quinta-feira, dezembro 30, 2004

Rui Knopfli

PRAÇA SETE DE MARÇO

No centro da praça, meu pai acena
do fundo do tempo: o coração
da cidade ao voltar da esquina.
Por sobre os metais cintilantes da banda,
o Ali de cofió rendado e cabaia branca
leva a bandeja nos gestos graves.
Há um bule de loiça e uma chávena
a fumegar na tarde, o odor quente
e loiro das torradas, o travo amargo
da compota; senhores que passeiam
de palhinha e palm beach, baneanes
magros de reverência solícita, um surdo
marulhar de pedras giradas no mah jong.
O horizonte abre para o mar, lisa
matriz do sol. Móveis, as sombras
gizam no empedrado caprichos longos
com o passar da luz entre a folhagem.
E meu pai tão longe que já o não vejo,
talvez de ter passado, como a luz,
sobre esse tempo e esse lugar, ora mudados
em eco fruste da memória. No centro
da praça volto-me para acenar a meu filho.


[119]

sexta-feira, dezembro 24, 2004

José Craveirinha

NATAL

A cidade acordou em festa.
Natal! Natal!
A Baixa encheu-se de gente. Nas lojas os brinquedos atraíam os pais com as crianças pela mão. Maguébe o negrinho, sobraçando seu monte de aspargos, parou em frente de uma montra. Os olhos abriram-se gulosamente perante as maravilhas tão perto e tão longe dele, que aquilo tudo era um sonho boiando nas pupilas redondas e cheias de todas as fomes de África. Triciclos, motos, camiões, aviões e tantas coisas mais, feitiçaria misteriosa para Maguébe, estavam ali atrás do muro de vidro.
Maguébe seguiu depois, rua fora, com seu grande ramo verde debaixo do braço e no pensamento: «a shitututo, a mimova, a shitimela... oh... inkuasu psa Quissimuce ya valungu!»
Um búzio grande soprava na alma de Maguébe as ânsias de um menino sem um balão sequer na mão escura, um reles balão encarnado para ele assoprar, o balão inchando como um sapo enorme.
Os machimbombos passavam pejados de gente com pressa.
Nas lojas há um entra-e-sai ininterrupto como formigueiro.
Maguébe cruza a rua, um carro buzina e passa, rápido, um olhar zangado do motorista a visá-lo da cabeça aos pés.
No bazar as pessoas iam e vinham, de banca em banca, numa lufa-lufa de batatas, legumes e frutas do Transval e também outras coisas que Maguébe nunca tinha comido e cujos nomes não sabia.
Maguébe passou no bazar, vendo, ouvindo e cheirando. Mas o maior milagre de Culucumba era a falta de espaço para a cobiça na alma do pequeno vendedor de ramos de aspargos. Ele não sofria e nunca provara aquelas coisas bonitas que brilhavam do outro lado do vidro das montras. A filosofia de Maguébe nascia e vivia de não saber.
Talvez fossem coisas boas, mais gostosas que o sumo de caju; a tincarosse; a mapsincha madura, mais coisas que não tinha perdido porque nunca as tivera. Talvez mesmo fossem melhores que mavunga!...
Custa é ter uma coisa que dá gosto depois perder tudo!
Maguébe, agora que estava morando na cidade, sentia vontade de provar as coisas dos mulungo. Quando ele descia as ruas gritando: -- Aspargo minha sinhôr!!!, havia senhoras que tinham pena dele e davam comida, às vezes bolos que ficavam do dia de anos do menino. Maguébe ficava contente e comia até lamber os dedos. Maguébe ficava sentado debaixo de uma sombra de cajueiro, descobrindo o gosto dos bolos até ao lamber dos dedos.
Hoje, véspera de Natal, Maguébe sai caminhando rua acima, buscando as moradias, a boca gritando: -- aspargo minha sinhôr... – e os grandes olhos amarrados ainda às paredes de vidro das casas grandes de chilunguine.
-- Aspargo minha sinhôr!!!
Mas a voz hoje perde-se no burburinho da cidade e no barulho dos motores dos automóveis que são os donos das estradas negras de alcatrão
-- Dá bocadinho de pão minha sinhôr...
Espreita nos portões, grita através das grades mas o apelo morre na lufa-lufa dos preparativos do Natal.
Maguébe olha, ajeita o ramo de aspargos no braço nu e lá vai estrada em estrada com o Natal nos olhos, nos ouvidos e no nariz achatado e a luzir em vão no ar embuzinado e festivo:
-- As... par... go minha sinhôr...
Já longe o pregão de Maguébeainda corta a atmosfera festiva da cidade, paira no ar como um balão suspenso:
-- As... par... go... minha sinhôr...
E nas veias do menino que veio de fundo da Munhuana com seu ramo de aspargos, um batuque estranho bate e repercute pelo corpo todo como se mil demónios dançassem chibugo dentro da sua barriga:
Qui... ssi... mu... ce! Qui... ssi... mu... ce!


[118]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Hamina e Outros Contos, Caminho

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Gulamo Khan

MOÇAMBICANTO I

céleres as águas
zambezeiam pela memória
das almadias do silêncio

nem o zumbido da cigarra
me entontece

nem o troar do tambor
me ensurdece

as vozes que são
sulcos das nossas esperanças

Oh pátria
moçambiquero-te
neste alumbramento
e amar-te
devo-o à carne e ao nervo
deglutidos em revolta.


[117]

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Gulamo Khan

XITIMELA

para Alexandre Langa

neste xitimela nosso comboio da vida
que nos faz meninos de ontem
pensar hoje vamos não só à Manhiça
mais longe vamos meu amigo
espera ver no diesel do teu peito
a força motriz que sopra
as mais belas ngomas deste moçambicano
e diz ao povo como sabes
que xitimela da vida é da gente
e faz poh poh poh num apeadeiro livre.


[116]

sábado, dezembro 11, 2004

Rui Knopfli

AUTO-RETRATO

De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracional, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga da perna, à fímbria da nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suiço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.


[115]

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Jorge Viegas

CÍRCULO DE SOMBRA

Ao Rui Knopfli

A minha alma é um círculo de sombra.
Os meus poemas são a pálida mensagem
dum homem melancólico. Se sou poeta,
decerto não o sou do tempo presente.

Escrevo poemas de amor, e os meus poemas
não conduzem os povos à contestação.
Gosto de passear nas ruas a antiga liberdade
que eu sei haver nos poetas que mais amo.

Uma liberdade que não conduz a nada,
uma liberdade que não explica nada.
Leio velhos filósofos de antigamente,

e velhos poetas, mais velhos ainda.
De quando em vez, monólogos em surdina.
A minha alma é um círculo de sombra.


[114]

sábado, novembro 27, 2004

Jorge Viegas

DO MEU PAÍS

Do meu País as aves se ausentaram
e com elas se foi a vida, a alegria.
E os poetas, nos versos que cantaram,
foram pássaros de morte e de melancolia.


[113]

terça-feira, novembro 23, 2004

José Craveirinha

POLANA

I

Doirada alcatifa d’areia.
Um cúmplice lençol de praia.

Gloriosas bocas ávidas
Celebrando hinos.

Epílogos de carícias.
Gaivotas de nervos.
A maresia.
O sol.
A praia.


II

Uma enternecedora capulana de maresia.
Uma arenosa esteira prateada.
Gloriosas nossas bocas ávidas
celebrando cem mil hinos das línguas.
Beijos trincando-nos os dentes.


[112]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Poemas Eróticos, Texto Editores, 2004

segunda-feira, novembro 22, 2004

GALINHA À ZAMBEZIANA

1 galinha
1 coco
1 colher de chá de sal
2 limões
2 dentes de alho
1 colher de chá de pimenta
1 colher de chá de piri-piri em pó
2 colheres de sopa de óleo

Toma-se uma galinha nova, limpa-se e tempera-se com sal, limão, pimenta, piri-piri e alho. Extrai-se o leite a um coco ralado e mistura-se com duas colheres de óleo. Grelha-se depois a galinha em fogo lento, regando-a constantemente com a mistura de coco e óleo. À hora de servir aproveite o molho que estiver no tabuleiro para regar a galinha. Esta receita é também saborosa quando a galinha é assada no carvão.
Bibliografia essencial: Hoje Temos... Receitas de Moçambique, Coord. Marielle Rowan, 1998

sexta-feira, novembro 19, 2004

Jorge Viegas

O NÚCLEO TENAZ

Ao Sebastião Alba

Com o poema
abriremos a noite,
jugularemos o medo.

Com o poema
construiremos o homem.
Não o homem definitivo,
enquistado em verdades irrecusáveis,
em certezas absolutas,
mas o homem
em permanente transformação.
O homem em viagem,
o homem-interrogação.

Porque o poema é sempre
(mesmo o das palavras mansas e amáveis)
o núcleo tenaz
duma revolução.


[111]

domingo, novembro 14, 2004

João Paulo Borges Coelho

AS VISITAS DO DR. VALDEZ (excerto)

(...)impera o silêncio naquela casa. Faltam palavras e sons no espaço que se foi cavando entre as duas mulheres. Sá Caetana, porque se recolheu dentro da tristeza e do rigor dos seus olhos fixos, da sua boca fina e cerrada; Sá Amélia, porque há tempo que deixou terra firme, navegando hoje num mar revolto onde não se descortinam territórios nem fronteiras, onde tudo é tão igual e amplo que nada fica por dizer.
A primeira, com os óculos pendurados na ponta do nariz, borda nos seus panos réplicas de sinais que o tempo já levou, sinais que transporta no interior da sua memória. Hoje está sentada na penumbra da sala. Desapareceram os recantos angulosos na escuridão que o fim da tarde já não consegue iluminar, ficou o espaço mais arredondado. Um último raio de sol incide sobre o pano cru onde ela vai bordando um par de gatos fofos, anafados. Gatos verdes, gatos que foi buscar ao sonho.
Na ilha do Ibo, onde cresceu, não havia gatos. Sempre que a sua mãe Ana Bessa os nomeava, povoando com um monte deles uma qualquer história fantástica, imaginava-os ela fofos e verdes (por um qualquer motivo nunca a mãe lhes dera cor, ou dera-a sem que a Caetaninha, criança dispersa e impaciente, a retivesse). Viu gatos mais tarde, claro, gatos de quase todas as cores que os gatos têm: pretos, brancos, castanhos, pardos. Mas os gatos que agora borda são os gatos verdes da sua infância. Gatos imaginários. Gatos alegres que brincam na mornidão daquele último raio de sol procurando chegar com as patas felpudas às minúsculas e infinitas partículas que ele transporta. Quando o dia acabar, quando se começarem a acender pequenas luzes nas janelas, Sá Caetana depositará o pano na cesta da costura e os gatos ali passarão a noite, inacabados, à espera que nova sessão de bordado lhes aumente a definição.
Também Sá Amélia visita o passado. Só que com muito menos rigor que a outra, e também com um proveito diferente. Incursões violentas, erráticas, destituídas de critério. Que a deixam a ronronar de prazer ou a assustam e fazem gemer baixinho. No lugar dos gatos da irmã, com as suas cores de fantasia, são temporais que descabelam coqueiros, são vagas de trabalhadores macondes do coqueiral com dentes aguçados e faces escarificadas onde o diabo deixou estranhos sinais. Olhando Maméia, criança e feia, com os seus olhos amarelos.
- Caetana, tenho medo! – diz ela nessas alturas, num fio de voz, como se fosse há muito tempo e ela fosse pequena e chamasse pela mãe, Ana Bessa, na varanda da Casa Grande.


[110]
Bibliografia essencial: João Paulo Borges Coelho, As Visitas do Dr. Valdez, Caminho

quarta-feira, novembro 10, 2004

Albino Magaia

NO SUL NADA DE NOVO

Ao mestre Craveirinha

Lá mais para o Sul
Mandela
continua a sonhar com uma estrela
Violas electrónicas do Soweto
vomitam notas de sangue
sobre os céus de Johannesburg
enquanto Miriam Makeba
curte o exílio na Guiné
Há joverns que morrem
suicidando-se em Smadje-Mandje
num contraste de preto e branco
com a sumptuosidade multinacional
nos lupanares do Transkey
Mama Winnie
essa grávida de coerência
continua a sonhar com o gesto íntimo de Nelson
depois de séculos de separação
como se fosse brincadeira
a interposição de Vorster e Botha
entre ela e os beijos do seu herói
Em Robben
há um militante não racista que morre
e os sobreviventes entoam Nkosi Sekelela
enquanto a noite da África Austral
ganha mais uma estrela
que não é ainda
a estrela com que Mandela sonha
Ouvi dizer
pelos jornais e pela rádio
que os filhos de Ghandi e outros deserdados
ganharam direito a voto lá no Sul
Só que os guerreiros de Tchaka
estão a morrer baleados ou enforcados
num ensaio geral organizado e eficiente
da nova edição modernado Dingana´s Day


[109]

sexta-feira, novembro 05, 2004

Amin Nordine

DO LADO DA ALA-B

Desaguada
Carícia dentária
Desenfeijoada em desprateada meia-lua de xima

Do lado da Ala-B
Qual sol se atreva na treva!

Sinto saudade de mim...


[108]

quarta-feira, outubro 27, 2004

Amin Nordine

CHAPA

A nauseabunda catinga empoleirada no incómodo do chapa
Vai chapa perseguindo chapa
Ao feitiço da paça acelerada no assobio do cobrador
Motor resmungão no mais apartado desconforto
Enlatado o chapa elástico de todas as paragens
Superlotada receita galgando o vento
Com mãos no coração do destino...


[107]

domingo, outubro 24, 2004

Rui Knopfli

EPIGRAMA

Os teus lábios, digo-te, não são doces
como mel.

(O mel
acaba por enjoar.)

Mas são doces, os teus lábios, digo-te.
Mas doces como quê?
Ora, doces como eles são.

Doces?

Sim, olha, doces como o pão
que todos os dias comemos
sem fartar.


[106]
ILUMINANDO VIDAS
Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana

Exposição
de 9 de Outubro a 12 de Dezembro de 2004

CULTURGEST - PORTO
Edifício Caixa Geral de Depósitos
Avenida dos Aliados nº1044000-065 Porto
Telefone: 22 209 81 16
De segunda a sábado, das 10h00 às 18h00 (última admissão às 17h45).
ENCERRA AOS DOMINGOS.

LINKS:
www.iluminandovidas.org
www.culturgest.pt/actual/iluminando_vidas.html

quarta-feira, outubro 20, 2004

José Craveirinha

AMANHÃ

Plena é a ilusão
só Deus imenso a sofrer.
Ouvirmos uma criança a gritar
e pensar que não somos nós um dia
homens na terra a chorar.

Não vivemos
a razão de estar vivos
e por isso é que despertamos
quietos depois de morrer.



[105]

terça-feira, outubro 05, 2004

Eduardo White

MANUAL DAS MÃOS (excerto)

Eu gostava de poder fugir a esta realidade tão fulminante. Dizem-me os amigos para enfrentar o problema, para agarrar o touro pelos cornos. Aliás, dizem-no sempre quando isto não é o que se passa com eles.

Não tenho dinheiro. Gastei-o a exilar-me em mim mesmo. No álcool, algumas vezes. A pagar rodadas dele aos amigos para não ficar sozinho. Tenho um pavor à solidão. É-me corrosiva e não sei viver com ela.

Penso, como consequência, em partir. Para onde? Não sei, se tivesse dinheiro era para uma ilha. A minha ilha. Moçambique. É bela. Antiga. Magistral.

Vejo-a:

Um pássaro revolve as asas por dentro do verde esbatido do mar. Traça a casa líquida que às estrelas, certamente, o seu piar vai dar. A história é-lhe longe, são formas entrecortadas, sobre a espuma amarelecida, dos navios cargueiros que beijam lentos o horizonte e movem silenciosos outras cargas.

A ilha suspende-se entre o vento e um negro reluzente cruza a praia com os olhos lavrando as areias. Não sei se reza, mas que pensa é mais que evidente. Testemunham os brancos cabelos e as mazelas no caqui dos desbotados calções. Cheira a marisco a brisa que inalam as narinas dentro desta paisagem e a cânfora, alguma, das memórias que ela desenha.

As redes que sobre o chão encontro estendidas, são cartas oceânicas que escreve o fundo do mar. Do texto salta a prata dos peixes, o verde amaciado das algas e uma estrela imóvel que explode, por dentro, a terra toda a girar. Claro que a areia as grava. Nessa forma de escrita mais milenar que a geringonça mágica de Gutemberg. Porque Deus descansa aqui, ao cair da noite. Silenciosamente medita por entre as lágrimas das tartarugas que junto a ele vêm desovar, ou de um negro macúa, estirado sobre o desgosto, a chorar um amor que, por teimosia, não quer morrer.

Vão longe, a navegar, os versos da miséria que do Luís de Camões a história quis esconder. Os ducados que nunca teve, nem para voltar nem para morrer, servem outros reinados e engordam a mesa dos que ainda julgam que poeta bom só miserável pode escrever. Lêem e estudam o que não dizem os poemas, sábios doutores esses universos etários, e nem com verdade podem entender, entretanto, o que eles explodem e doem e fazem crescer no coração esquecido dos seus autores.

Por isso a Ilha é calma. Tonta de tanta quietude e, talvez, será o que querem dizer as faces delicadas das suas negras, as mãos talhadas dos seus ourives.

Assim, o meu velho Camões, macúa zarolho só por ter visto sempre demais, terá, talvez, ali, amado o seu negro, seus humanos adamastores e com eles provado essa fatalidade incontornável de ser poeta sem ilha na ilha extensa dos que nela, até hoje, não o sabem ler.

Mas era para lá que eu queria partir.


[104]
Bibliografia essencial: Eduardo White, O Manual das Mãos, Campo das Letras.

sexta-feira, outubro 01, 2004

José Craveirinha

A RAIVA QUE SE LIMITA

A Raiva que se limita
Nunca sobra por fora
Mas nasce e como nasce
Renasce quando se chora.


[103]

terça-feira, setembro 28, 2004

Grabato Dias

LAURENTINA XIPAMANENSIS
RONGA MAXILAR

Acontecem coisas indizíveis cada minuto.
Onde estava deus que não veio ver
o momento em que pariste o amanhecer
num riso enxuto?

E onde estava o dianho e onde estava S. João
O que é que a virgem estava a mirar?
Onde tinha o profeta a atenção
que não saiu antes a anunciar?

Raios parta a corte deste céu vão
anjos e tudo
Assim perderam a ocasião
de eternizar a emoção
do teu rir súbito e enxuto.


[102]

sábado, setembro 18, 2004

Grabato Dias

BAIXA LAURENTINA

Desde a esquina do djambu
‘té à do continental
trato os passeios por tu
e um parquímetro mais cómodo
é meu guru pessoal

Encostado e repimpão
olho a ladeira plana
subindo a partir do chão
de cada ponto opção
dos extremos da semana

Conto os passos de quem passa
passeando as dores passivas
passa uma velha uva passa
uma manga femeaça
um ceguinho sem mordaça
um vendedor de caraças
e olhodoins de ameaça
miram rebanhos de chivas.

Mil uvas de várias cores
vão irmãs do mesmo cacho.
Do branco ao tinto é um ror
de perfumes. Preto é cor
negro é raça dum diacho!

Avé, vida da ré pública!
cruza ao gosto do gatilho
numa cruz que não explica
onde é que a cruz simplifica
a trajectória do milho

tudo vai melhor amigo
com coca cola e quejandos
espetam a palha no umbigo
e iniciem o mim migo
ciclo de dor e castigo
pescadinha ao gosto antigo
memimigo memimigo
entoladinhos e bambos

vou aos saldos do jònór
comprar mais antipatia
e uma quinhebta de dor
no muro sotomaior
a ajudar a rebeldia

faço mira pela estrela
dum super branco mercedes
e enquadro a ramela
do cego de sentinela
a uma vitrine de sedas

que capulana bonita
traz a mitó amaral
veio, juro, da botica
mais chicqueira, mais bonita
mais xi... cara patrão! (chita
de pele humana e mortal)

raios pátriam esta tonta
partida dos deuses. Haja
um fim para esta ronda
de paisanos songa monga
com apetites de gaja

... do continental ao djambu
- meu privado festival –
trato os passeios por tu
e um parquímetro guru
é minha espinha dorsal...


[101]

sexta-feira, setembro 10, 2004

Rui Knoplfli

CERTIDÃO DE ÓBITO

Um tempo de lanças nuas
espera por nós, riso
cruel de maxilas em riste.
Entanto a vida desabrocha
tenra e tépida,
fruto e flor na ânsia secular
de quem tanto esperou em vão.
Para nós, todavia,
o tempo é de lanças impiedosas,
de lâminas em cuja brancura
se adivinha já um indício
do nosso sangue. Deste tempo
sobrou-nos a acerado das lanças:
este o quinhão ácido que nos coube
e que mastigamos resignadamente.

Entanto, num levedar de ternura,
frágil e muito bela, a vida desponta
na negra polpa de outros dedos.
Para nós, o prémio do aço,
a estrela da pólvora, a comenda do fogo.
Para nós a consolação do sorriso triste
e da amargura sabida. Falamo-nos
e nas palavras mais comuns
há rituais de depedida. Falamos
e as palavras que dizemos
dizem adeus.


[100]

quinta-feira, setembro 02, 2004

Albino Magaia

DESCOLONIZÁMOS O LAND-ROVER

Já não é carro cobrador de impostos
Nós descolonizámo-lo.
Já não é terror quando entra na povoação
Já não é Land-Rover do induna e do sipaio.
É velho e conhece todas as picadas que pisa.
É experiente este carro britânico
Seguro aliado do chicote explorador.
Mas nós descolonizámo-lo.
No matope e no areal
Sua tracção às quatro rodas
Garante chegada às machambas mais distantes
Às cooperativas dos camponeses.
Entra na aldeia e no centro piloto
Ruge militante nas mãos seguras do condutor
Obedece fiel a todas as manobras
Mesmo incompleto por falta de peças.
- Descolonizámos o Land-Rover
Com nossos produtos
Comprámos combustível que consome
Com nossa inteligência
Consertámos avarias que surgem
Com nossa luta
Transformámos em amigo este inimigo.
Nós, descolonizadores
Libertámos o Land-Rover
Porque também ficou independente, afinal
Transformaram-se os objectivos que servia
E hoje é militante mecânico
Um desviado reeducado
Uma prostituta reconvertida em nossa companheira.
Descolonizámo-la e com ela casámos
E não haverá divórcio.
De Tete a Cabo Delgado
Do Niassa a Gaza
Da sede provincial ao círculo
Este jeep saúda quando passa
O caterpillar, seu irmão
Outro descolonizado fazedor de estradas
E cruza-se com o Berliet atarefado
Ex-pisador de minas
Eles aprenderam com a G-3
Menina vanguardista na mudança de rumo
A primeira a saber e a gostar
A diferença antagónica
Entre a carícia libertadora das nossas mãos
e o aperto sufocante e opressor do inimigo que servia.
As mãos dos operários que o fabricam
são iguais às mãos dos operários da nossa terra.
Essas mãos inglesas que o criam
Um dia saberão que ajudaram a fazer a revolução
e vão levantar o punho fechado da solidariedade.
Ruge este militante nas picadas da Zambézia
Galga as difíceis estradas de Sofala
Passa pelos pomares de Manica
Pelo milho de Gaza
Pelas palmeiras de Inhambane
Na cidade do Maputo descansa.
Transporta pelo país os olhos dos estrangeiros amigos
que querem conhecer de perto a nossa Revolução
- Descolonizámos uma arma do inimigo
Descolonizámos o Land-Rover!
Aquelas quatro rodas de um motor potente
Aquela cabine dos mecanismos de comando
Aquelas linhas da carroçaria irmanadas ao medo
Já não afugentam o povo:
Homens, Mulheres e Crianças do campo
fazendo sinal ao condutor, pedem boleia.
Nós descolonizámos o Land-Rover
Por isso o povo já não foge.


[99]

sábado, agosto 28, 2004

Júlio Carrilho

PORTA DE ÁGUA

Quarenta e tal quilómetros quadrados
de modorras viradas para a praia
escoam dos solares escancarados
a deixar os mortos a olhar
luzentes cristais de água de cambraia

Não sei ainda se isto é alegria
deixada até ao estoiro da miséria
mas a calma tecida dia-a-dia
tem o vagar da pressa que se quer
no endógeno assumir-se de matéria

Ah porta minha que deste as águas
para buscar as faces da verdade
hoje descontraída em tuas mágoas:
não tens a quem explicar o teu saber
que a nudez distorce sem maldade

Teremos que esperar que se decante
no teu líquido palco o som dos remos
se afinem silhuetas de ar cortante
para depois por ruas sem licença
abrirmos planos que só nós podemos


[98]

quinta-feira, agosto 19, 2004

Alberto de Lacerda

A MINHA ILHA

Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam
No meio da rua como peregrinos
Dum mundo mais aberto e cristalino


[97]

domingo, agosto 15, 2004

Leite de Vasconcelos

RECEITA PARA UMA INFRACÇÃO

Poderia ser para o Dr. Albertino Damasceno
mas é, mais simplesmente e com amizade,
para o Tino

Toma nas mãos uma manga
dessas que verdes o Knopfli sente
na infância do palato
Tens cinquenta anos
dois rins em greve até à morte
e um que pertenceu a alguém que desconheces
e por morto não soube a quem doou
a faculdade de mijar ainda
Uma hérnia dizem-te que discal
desferidora de zagaias contra a coxa esquerda
mal consentes o pretexto de um movimento
menos respeitoso
impede que com manga e canivete
subas à forquilha de uma árvore
além de que tens mais de cubicagem
que força para elevá-la a músculos
De músculos falando
o cardíaco funciona menos mal
mas a tensão tende a subir
se não cortas o sal pela raiz
Falam-te também de certas precauções
que o fígado prescreve
e o baço embora menos determina
Apesar do sobredito toma nas mãos a manga
goza nas mãos primeiro sua redondez e consistência
dedilha a promessa da insídia mais adiante
Interdita a altura da árvore Paciência!
Faz-te Robin dos Bosques rasteiro
com bojo de frei Tuck e senta-te na sombra
(seria mais indigno subires por uma escada)

Agora com canivete e ternura fende a manga
mas guarda-te de a escalpares
Deves sentir dela a pele e o íntimo
como quando se beija uma mulher
Manda ao diabo a tensão
e deixa repousar por um momento em decúbito ventral
o pedaço de manga numa cama de sal
de preferência grosso por forma a que dois ou três grãos
adiram à carnação Não cerres os olhos É preciso
misturar a manga o sal a luz o remexer das folhas
e a eventualidade de acidentes felizes
como saltar num ramo o xitotonguana azul do Craveirinha
Atentamente morde e devagar
até que o imaturo açúcar desentranhe
se desprenda venha salpicar de infância
as papilas do tempo e liquefaça o sal em lágrima
mas lágrima feliz de ácidas memórias
como suor de corrida correndo nos lábios
polpa de maçanica beijo entre canas fruto de embondeiro
casca de tangerina espremida junto aos olhos

Toma uma verde manga como um rio
uma simples manga de Novembro
de ti para ti transplantada
nos dezembros da vida


[96]

quinta-feira, agosto 12, 2004

Heliodoro Baptista

À VOLTA DAS ORIGENS

Ao Rui Knopfli e ao Eugénio de Andrade

Sim, de facto, «uma só e várias línguas
eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria».

Outros vieram e estão
na curva ambulatória do terreno,
entrecortando a escrita ao sol
com a que, na bruma, lascivo lugar
dos malditos de esgares cínicos
mas persuasivos,
estrangula, subverte também
a repulsa.

Alguns reencarnam, voltam a nascer
de uma emoção que, anos atrás,
os condicionou, e isso tem sido notícia,
curiosidade incorporada
na astúcia discreta dos que triunfam
pelos propósitos trazidos
há um quarto de século.

Palmeiras, casuarinas, eucaliptos,
micaias, planuras, mangueiras, enfim,
a ainda inacabada totalidade do país amado,
tudo existe, não é mitológica passagem
de forças cujo núcleo, por estranho, também,
que pareça, é uma ordem desordenada,
uma certeza de mil incertezas,
mas isenta já de prodígios,
confusa e humana.

Nós outros, como vós, os que virão,
baixos-relevos das mais remotas
e tranquilas paisagens onde o tempo urge
propostas originais,
desencadearemos talvez a infidelidade
a outros mitos que a escrita, impressiva,
esconjura nos significantes.
Suportemos, como compensação, os impulsos dos néscios.


[95]

terça-feira, agosto 03, 2004

Carlos Cardoso

RUTH FIRST

Isto dos mortos não falarem
não sei.
É que de certos mortos
costumam nascer embondeiros
de raiva
no capim da hesitação.


[94]

domingo, agosto 01, 2004

Nelson Saúte

TESTAMENTO PARA OS MEUS FILHOS

Mayisha e Irati:
este o magro pecúlio que vos deixo
- livros, papéis, sonhos.
Poemas para as mulheres
que amei. Hinos de amor à vossa mãe.
Filhos, só vocês dois.
Depois de mim herdarão o nome
e a tarefa de perpetuar o que progenitor
encetou. Fica para trás uma vida.
Ilusões, cansaços, combates.
Infrutífero desespero de viver
num país apátrida.
Deixo-vos estes desígnios
de coisa nenhuma. Algum pecúlio
um coração, bondade e alguma fé
doméstica. Amanhã estes homens
e mulheres que se festejam
na algazarra das vozes e na luz
de artifício nada terão para vos dizer.
Oiçam então a voz do progenitor
que não sucumbe às vozes
nesta madrugada primeira
do vigésimo primeiro século.
Estas vozes digo-vos estarão
apagadas pela cinza do tempo
e do esquecimento.
Vosso pai afagar-vos-á
com a mesma ternura enquanto vivia
e levar-vos-á a passear pelas ruas da memória
com a mesma ilusão que vos alberga
nesta pequena casa que também vos deixa.
Para trás ficará um tempo
mas não ficarão os homens que destroçaram
a minha geração, meus filhos.
Não ficarão os sonhos e ilusões
nem a lembrança inconsútil da barbárie.
Espero que resista a honra deste homem
que está por detrás destes versos e que um dia
curvados sobre a sua tumba
vocês digam sem vergonha: Pai


[93]

sábado, julho 31, 2004

Bibliografia essencial: Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana, Org. e Prefácio Nelson Saúte, Dom Quixote

sábado, julho 24, 2004

Sebastião Alba

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


[92]

quinta-feira, julho 22, 2004

Isabella Oliveira

M. & U. COMPANHIA ILIMITADA (excerto)

Com o aproximar da meia-noite, qualquer sirene, qualquer foco de luz que se acendesse, incendiava o estádio. Seria o Presidente?, é que o tempo passava e a festa nunca mais começava! Das bancadas ao lado, chegavam explicações, através dos múltiplos transístores com que o povo seguia aquelas horas. A chuva estava a provocar inundações e engarrafamentos nos acessos à Machava, havia carros avariados e muita gente a sair dos machimbombos, preferindo fazer o percurso a pé.
Passou a meia-noite e continuávamos por nascer. Até que, uma eternidade depois, um carro, ladeado por motas e sempre iluminado por focos de luzes, passou o túnel e entrou na pista, que percorreu a baixa velocidade, sob o incansável e delirante aplauso geral. Quando parou e a porta de trás se abriu, percebi então o que é que deverá sentir um crente, caso alguma vez lhe venha a ser dada a oportunidade de ver, finalmente, o seu Deus. Não há outras palavras para descrever o meu encontro com o sorriso e o brilho de felicidade no olhar humano com que o Presidente saiu do carro e deu os primeiros passos. O herói maior da parede do meu quarto estava ali e eu estava a vê-lo! Ainda bem que naquele momento estava sozinha, no meio das escadas que dividiam as três ou quatro filas de bancadas por que era responsável, assim ninguém me distraiu.
Instalado o Presidente, entrou no estádio, a correr, o último homem. Também ele atravessou a pista, mas para subir ao extremo oposto do túnel, erguendo na mão o facho aceso da Liberdade que, um mês antes, entrara com o Presidente em Moçambique. Quando o ateou na pia do estádio, foi mais uma vez o delírio geral. Agora, sim, do Rovuma ao Maputo, podia ser declarada a independência!
 
Se a chegada do Presidente foi, para mim, uma sensação difícil de ser ultrapassada, o momento seguinte rebentou o estádio: era o sonho a concretizar-se!
Lado a lado, fardados, entraram no relvado duas filas de homens de exércitos diferentes. Por Portugal, um representante de cada um dos três ramos das forças armadas e, por Moçambique, três guerrilheiros da FRELIMO. O da frente vai actuar num palco muito diferente daquele em que, há quase doze anos atrás, deu o primeiro tiro que, no Chai, iniciou a guerra de libertação. Ninguém mais do Alberto Chipende merece estar ali. Começa então a descer a bandeira portuguesa e o povo grita «BAIXA!, BAIXA!». Quando o estandarte das quinas chega à base do mastro, principia a sua ascensão, como que envolta numa auréola de luz (talvez devido ao efeito da chuva, a cor amarela sobressaía), a bandeira da minha Utopia. Tive então a sorte de cair em mim, ainda que apenas por poucos segundos, para poder observar o espectáculo único de todo aquele êxtase e, também por mero acaso, fixar as duas lágrimas que escorriam do tatuado rosto maconde de Sebastião Mabote, o mais guerrilheiro dos elementos do Comité Central. Depois, voltei a mergulhar na nossa festa, como era bonita a bandeira de Moçambique!
 
Alinhada no centro do relvado, a banda fez então soar o hino nacional, por todos cantado a plenos pulmões:
 
Viva, viva, a FRELIMO
Guia do povo moçambicano
Povo heróico que arma em punho
O colonialismo derrubou
 
Todo o povo unido
Desde o Rovuma ao Maputo
Luta contra o imperialismo
Continua e sempre vencerá
 
Coro:
Viva Moçambique,
Viva a bandeira, símbolo nacional,
Viva Moçambique,
Que por ti o povo lutará!
 
Unido ao mundo inteiro
Lutando contra a burguesia
Nossa pátria será túmulo
Do capitalismo e da exploração
 
O povo moçambicano
De operários e de camponeses
Engajado no trabalho
A riqueza sempre brotará
 
Na tribuna, sucederam-se os aplausos. Depois o Presidente avançou para o microfone, cabia-lhe agora proclamar a Independência, mas, por causa da chuva, a electricidade falha e não há som. Quando reaparece, o Presidente pergunta ao povo, «Estão-me a ouvir?», é arranjo de poucos segundos. Nova tentativa e o Presidente incita o estádio a acompanhá-lo numa canção revolucionária. Desta vez, o povo responde. Samora Machel repete as palavras com que, a 25 de Setembro de 1964, Eduardo Mondlane declara o início da guerra de libertação e, a seguir, ouviram-se as palavras mágicas: Moçambicanos, moçambicanas, em vosso nome, às zero horas de hoje, 25 de junho de 1975, o Comité Central da FRELIMO proclama solenemente a Independência total e completa de Moçambique e a sua constituição em República Popular de Moçambique!
 

[91]
Bibliografia essencial: Isabella Oliveira, M. & U.  Companhia Ilimitada, Ed. Afrontamento

segunda-feira, julho 19, 2004

Mutimati Barnabé João
 
DIA 7
 
No dia 7
Morreu uma camarada que vai ficar insepulta
Que vai tornar o ar perfumado e morreu
Que vai dar sempre flor de coragem e está morta
Que era da família nossa e ninguém vai chorar
Que os camaradas sabiam importante mas ela não
E vai ficar insepulta porque é um grande cadáver
E não há terra suficiente para cavar esta sepultura.
 
É assim mesmo
Quando alguém cresce até ao tamanho do Povo
Fica por enterrar porque é muito grande.
O Herói não tem sepultura.
 
 
[90]

domingo, julho 11, 2004

Rui Knopfli

NUNCA MAIS É SÁBADO!...

- conjecturamos à segunda-feira,
início de uma longa ressaca,
em todas as claves, desde o ré menor
gemebundo aos claros tons de sol maior.
Nós os humildes e os humilhados,
os que não temos rosto próprio porque somos
o rosto da multidão. Nós, o branco-branco,
o preto-preto e o branco-preto.
O senhor que desce o elevador da manhã
e a virgem desflorada na véspera
que o sobe trazendo nos olhos o pavor
da gravidez e da desonra (e é obrigatória
em todos os articulados deste género). E a moça
desflorada há mais tempo. Um namorado
tímido e um senhor casado a compensar
a timidez do adolescente, com a ciência
mais exacta, mais precisa, que lhe vem
do tédio conjugal. E o velho guarda negro
do elevador, a piscar, a piscar um sono
nunca redimido. E o contínuo que não vai
de elevador, mas sobe pela escada de serviço
até ao quinto andar, carregando em jeito
de via sacra a bicicleta da firma,
cada qual trepando a seu Gólgota privativo.
E os que esperam para lá da penumbra
dos balcões, no silêncio húmido dos armazéns,
no bafio burocrático e gris das repartições
com funcionários de vida atribulada
funcionários de vida empenhada,
funcionários de vida sempre estragada.
Os que esperam na jaula envidraçada dos cafés,
fumando o cigarro bronquítico da melancolia;
na fuligem luminosa do cais, nas zonas
de carga e descarga, na longa fita de asfalto
ardente, na perigosa articulação dos ângulos
de betão do prédio de onze andares.
Os que uma regra de excepção escondeu
por detrás dos altos muros de um silêncio
recluso e têm o olhar mortiço
e a expressão resignada. Os que dormitam
atentos, em bancos públicos de jardim,
os que fazem um amor rápido e dolorido
a horas impróprias, em apartamentos de empréstimo.
O estudante com a mão entalada nas coxas
firmes e tépidas da colega morena e sensual,
o marinheiro adormecido na branca espuma
da sétima cerveja, as putas adejando,
multicolores borboletas de vício, blenorragias
de transmissão fulminante e cura arrastada.
Os que alimentam de miséria a sua miséria
e outros que, estando melhor, a nutrem
na miséria de pequenas e grandes indústrias.
E os que nem sequer a alimentam
no lôbrego ventre de oficinas e fábricas.
Toda a população flutuante do elevador
e da escada de serviço, do prédio e da rua;
o senhor engenheiro com uma dor de corno
e dois projectos enguiçados; o clínico preso
aos afazeres (cinco prédios, uma hérnia estrangulada
e o consultório cheio de pacientes); o advogado
a correr atrás dos prazos, dos prazos
cada vez mais curtos; a senhora enfrentando
a crise difícil da menopausa, a viúva
de negro que vai ao médico com uma pontada
no baixo-ventre e uma amostra de urina
em frasco embrulhado em papel de jornal.
Da escada de serviço e do elevador
para o prédio, do prédio para a rua,
da rua para a praça, da praça para a cidade,
da cidade para o subúrbio, onde crescem
a doença, p medo, a fome e o futuro,
- nunca, nunca mais é sábado.


[89]

quarta-feira, junho 30, 2004

Fonseca Amaral

EXÍLIO

Longe embora cidade paráclita
a língua se nos cola ao céu da boca
se vier o olvido.

Banhas-te connosco em águas de desterro
flutuas sempre por nossa boca
nas praias da memória.

Nos dias mais soalheiros da diáspora
és tu quem materna vem dizer «estou aqui»
à emoção que nos habita.

Marulham outras águas aqui
mas quando as invocamos é Baía do Espírito Santo
o nome que nos corre à boca.

São lembranças que viajam para ti
mãe estuante que nos deste o leite e o mel
hoje por tão longe dissipados.


[88]

sábado, junho 26, 2004

José Craveirinha

ANTI-LIRISMO INÚTIL

Não alfabetizes as palavras.
Lê-as uma por uma, meu amor,
e solda o sentimento ao que elas
juntas e despidas te dizem.

Lindo o verso
faz-se do alfabeto momentâneo
que desejamos liricamente
folheando o livro dos sinónimos.

Mas o poema
esse organiza ou ressuscita
visceral consoante a humildade
com que somos mexoeira do fértil chão
o legível som exterior do xitende
o plasma longínquo dos tambores
ou a espancada
consciência do homem vivo.


[87]

segunda-feira, junho 21, 2004

José Craveirinha

PÁTRIA

Essência
dos intumescidos lábios
quilhas fendendo as ondas
in-amor rubro de ferteis azagaias.

Ruge
o leão dos nervos.
A bússula norteia
entretanto irmãos das micaias
a juba e as folhas cujo destino
o vento impele norte a sul.
E landinizados filhos meus
crescendo realizam-se
genuínos como a própria terra.


[86]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Poemas Da Prisão, Texto Editora

sábado, junho 19, 2004

Rui Knopfli

POEMAZINHO REACCIONÁRIO PARA USO PARTICULAR

Tenho uma flor. Pálida.
Não uma flor difícil,
não uma rosa multicor,
complicada, de um jardim secreto.
Não uma flor agreste, uma flor
de micaia, flor da minha terra,
que sou desenraizado.
Uma flor qualquer que me inspire
e me qualifique. E adoce
este tempo que habito.
Simples, pálida, de haste longa
e pétalas simétricas.
Talvez um malmequer,
talvez algo bem mais simples.
Sem cheiro, sem cor,
sem importância alguma. Uma flor.
Uma flor de plástico.


[85]

sexta-feira, junho 11, 2004

Fonseca Amaral

KARAMCHAND

O Guru, de olhos tão antigos,
tem seu miúdo comércio
numa loja de penumbras
Sorri
e as mãos, magros insectos amestrados,
tudo apertam num retrós de perfeição.

Se a um curto gesto
a um milimétrico acto
impõe sacralidade,
os lábios escravos, esses,
salmodiam o cântico de compra-e-venda:
(Buísa mali! Teka basela! Buísa! Teka!)
- rio múrmuro que sua barca
- tem, solarmente, de percorrer.

Escurece. Fecha a porta, Mestre.
Enquista-te, aranha, no canto mais obscuro.
Não te torças,
sicómoro batido de vento.
Não te espreguices,
felino de olhos acendidos.
Mas tu, Mestre, lança essa teia,
saliva irisada de palavras,
agita os braços, distende os músculos,
à espera de bala ou pedra ou eco...

Chega-se a hora de, por teu discorrer,
se escancararem, para alguns de nós,
imprevistos corredores, arcadas e portões.
Karamchand tornam-se, a partir daí,
todas as coisas tão imponderáveis,
germinando sagradas, abissais,
sob o resfolegar asmático do petromax!

O mundo maya é ilusão,
insistes petrificado, madrugada adentro,
rasgando-te a boca o cinzel verbal do Lakavatara.
Mas Karamchand, Mestre, desperta,
já te deu o sol no rosto.

Passa a mão e uma púcara de água
por esses olhos tão antigos,
volta aos panos, agulhas e linhas
- tua habitação diurna -
por detrás do sórdido balcão.

Será mesmo de sombras o mundo maya,
ó meu guru iludido,
sombrio baneane de raízes ao vento,
lingam murcho, frio,
já sem amoroso porto a demandar?


[84]

quinta-feira, junho 03, 2004

Noémia de Sousa

SE ME QUISERES CONHECER

Para Antero

Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
- ah, essa sou eu

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...

E nada mais perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.


[83]

domingo, maio 30, 2004

Ruy Guerra

A MORTE DO VELHO GUERREIRO SWAZI

Os meus pais tinham uma casa no meio das montanhas, na Namaácha, fronteira com a Swazilândia.
Eu era um garoto de uns seis anos quando começou a ser construída, e até hoje guardo a lembrança da aventura que foi ajudar meu pai a marcar com barbante, na terra vermelha, os limites das fundações.
Nessa casa de pedra à vista iria passar, ao longo da minha infância, grande parte das férias familiares.
Por isso, quando em 1975 fui a Moçambique para assistir aos festejos da Independência, foi com um sentimento que não procuro descrever, que subi a estrada da Namaácha a setenta e poucos quilómetros da capital.
Quando vi a velha casa de pedra com sua varanda, me espantei que ainda estivesse lá, como se os 25 anos de ausência fossem uma eternidade de terremotos. Mas passada a água nos olhos, tive um sorriso que contado pode parecer descabido ao ver as mudas de macieiras, cerejeiras, amendoeiras, que o meu pai mandara buscar de navio em Portugal e plantara com serapilheiras e fé. Continuavam lá, atrofiadas árvores inadaptadas, miúdas, mesquinhas, mirradas, iguais a quando eu as deixara pela última vez, e já então motivo de chacota da minha parte diante da teimosa esperança de meu pai de que ainda vingariam no frio das montanhas e dariam frutos nostálgicos da Metrópole, colhidos no pé, em terra africana.
Não vou falar do que é encontrar um velho livro extraviado de Tarzan, da Terramarear, com minha assinatura de jovem adolescente, ou reavivar de chofre inexplicáveis esquecimentos, que batem com a violência de uma vertiginosa viagem na saudade. Lembro que lembrei dias e noites, caçadas e jogos, passeios na velha cascata que não visitei para não me surpreender de a encontrar igual a ela mesma, como se o tempo não tivesse passado e o vazio dos meus pais fosse uma absurda imagem de filho pródigo.
Depois olhei o alpendre-garagem rasgado pelo abandono, e mais além, a meio caminho do terreno invadido de capim, aquele outro vazio doloroso.
Caminhei até lá, pisei a erva bravia e tive a certeza que tinha sido ali, mais palmo menos palmo, que eu tinha ajudado com a alegria da minha inocência, a construir a palhota do velho guerreiro. Lembro que lembrei como o velho swazi me ensinou a colocar os paus no tecto cónico, como me ensinou a ciência das nós e das tranças de palha seca até a para mim imensa abóbada ficar pronta, pousada no solo, expectante.
Lembro que lembrei a excitação de jogar o barro nas paredes dia após dia, numa azáfama prazerosa que me fazia levantar ao romper do sol para me juntar ao velho swazi, que me esperava sorrindo, os bigodes ralos pendentes, os olhos puxados, capulana e torso nu, catana nos dedos grossos, mistura de negro e malaio. Lembro que lembrei quando chegou a hora de pedir ajuda e vieram da vizinhança músculos para ajudar a levantar o tecto à força de braço e canções, sobre as paredes da palhota, de porta pronta.
Lembro ainda que recordei depois, já numa nebulosa de nó na garganta, as inúmeras vezes em que saí para a caça com o velho guerreiro swazi, que me ensinava os caminhos do mato, os perigos da mamba, a leitura das sombras do macaco-cão, as águas de beber, as marcas a deixar, os rastros a esquecer. Lembro que recordei das comidas em volta do fogo dentro da palhota, os olhos picados pelo fumo, quando o velho guerreiro cantarolava canções que eu não entendia, como não entendia o seu linguajar swazi além de meia dúzia de palavras aprendidas entre nós como náufragos solitários. Porque o velho Lambo, guardião durante anos a fio da casa da Namaácha, jamais tentou um só som de português, não por desinteresse, mas suspeito por não lhe descobrir a utilidade.
E lembro agora, como lembrei muitas vezes durante muitos esquecimentos, o dia em que o meu pai se aproximou mansamente de mim na nossa residência de Lourenço Marques para dizer que o velho Lambo estava na cidade e queria se despedir.
Corri excitado, quando a minha alegria de abraçar o velho guerreiro foi cortada: não me deixaram aproximar mais que três passos.
O velho guerreiro swazi me sorriu, os bigodes ralos agora mais pendentes, um rosto escalavrado por uma inesperada magreza, uma desconhecida camisa de quadros dançando no corpo só de ossos. De igual apenas a mesma capulana colorida.
Me falou com voz rouca algumas frases curtas e sacudidas, num swazi que escapa às minhas poucas palavras do idioma. Mas entendi o olhar febril, o sorriso crispado, e entendi a sua ternura, quando o meu pai, os olhos húmidos, explicou tristemente:

Não podes aproximar-te. O Lambo está muito doente. Trouxe-o para tratamento mas ele agora quer voltar para a Namaácha. Pediu para te dizer adeus.
Daquela distância, que já era a distância da morte, o velho guerreiro me fez um derradeiro aceno e entrou bruscamente na caminhonete, sem mais um olhar.
Lambo morreu de tuberculose poucos dias depois, e a sua palhota foi queimada.
Durante muito tempo não tive coragem de voltar à casa de pedra da Namaácha.

Dizem que não se morre enquanto se é lembrado.
Se assim for, o velho guerreiro swazi continuará vivo até ao fim de mim mesmo.


[82]
Bibliografia essencial: Ruy Guerra, 20 Navios, Caminho

quinta-feira, maio 27, 2004

O primeiro poema apareceu há precisamente um ano.
Desde então, compareceram à sombra dos palmares:

De Longe Esta Ilha Parece Pequena (Canção Popular)
Alberto de Lacerda - Regresso
Alberto de Lacerda - L'Isle Joyeuse
Alberto de Lacerda - Ponta da Ilha
Campos Oliveira - O Pescador de Moçambique
Eugénio Lisboa - No Tempo em Que, Fernando
Eugénio Lisboa - Origem
Fonseca Amaral - L'Aprés-Midi D'un Gala-Gala
Fonseca Amaral - Penitência
Fonseca Amaral - Passagem de Nível
Fonseca Amaral - Para Um Barco Que Apodrece a Meio da Baía
Glória de Santana - Dia Africano
Grabato Dias - As Quybyrycas (canto nove - fragmento)
Grabato Dias - Laurentina Cesariniana 2
João Dias - Gôdido
João Dias - Indivíduo Preto
José Craveirinha - Poema de JC Num Dia em que Estava Todo de Negro
José Craveirinha - Aforismo
José Craveirinha - Esperança
José Craveirinha - Primavera
José Craveirinha - Moçambiquicida
José Craveirinha - Menus
José Craveirinha - Quero Ser Tambor
José Craveirinha - O Bule e O Blue
José Craveirinha - Xigubo
José Craveirinha - Grito Negro
José Craveirinha - África
José Craveirinha - Boato do Velho Ussene
José Craveirinha - Mina Antipessoal
José Craveirinha - Gente a Trouxe-Mouxe
José Craveirinha - Trouxa de 8 Couves
Luis Bernardo Honwana - As Mãos dos Pretos
Luis Carlos Patraquim - Muhípiti
Mia Couto - O Primeiro Astronauta
Mia Couto - Poema Mestiço
Mia Couto - (Escre)ver-me
Mutimati Barnabé João - Eu, O Povo
Nelson Saúte - Mulher de M´siro
Noémia de Sousa - Poema Para Rui de Noronha
Noémia de Sousa - Poema da Infância Distante
Noémia de Sousa - A Billie Holiday, Cantora
Noémia de Sousa - A Mulher Que Ri à Vida e à Morte
Noémia de Sousa - Porquê
Noémia de Sousa - Justificação
Noémia de Sousa - Nossa Voz
Noémia de Sousa - Moça das Docas
Noémia de Sousa - Bayete
Nuno Bermudes - Natal em África
Orlando Mendes - Rigor
Orlando Mendes - Instante Para Depois
Rui de Noronha - Surge et Ambula
Rui de Noronha - À Tarde
Rui de Noronha - Grito de Alma
Rui Knopfli - Então, Rui?
Rui Knopfli - Naturalidade
Rui Knopfli - Ilha Dourada
Rui Knopfli - O Povo da China Visto do Alto-Maé
Rui Knopfli - Na Morte de Reinaldo Ferreira
Rui Knopfli - Proposição
Rui Knopfli - Dana
Rui Knopfli - Carta para Um Amor
Rui Knopfli - Ponta da Ilha
Rui Knopfli - No Crematório Baneane
Rui Knopfli - Baldio
Rui Knopfli - Kaap Die Goeie Hoop
Rui Knopfli - O Campo
Rui Knopfli - Retorno
Rui Knopfli - Nenhum Monumento
Rui Knopfli - II. Pátria
Rui Knopfli - Mesquita Grande
Rui Knopfli - Dawn
Rui Knopfli - Hidrografia
Rui Knopfli - Aeroporto
Rui Knopfli - Inventário
Rui Knopfli - Mangas Verdes com Sal
Sebastião Alba - Cidade Baixa
Sebastião Alba - Reinaldo Ferreira
Sebastião Alba - Mais Do Que Do Outro
Sebastião Alba - Ícaro
Suleiman Cassamo - O Rascunho
Virgílio de Lemos - Ouamisi

domingo, maio 23, 2004

Fonseca Amaral

PARA UM BARCO QUE APODRECE A MEIO DA BAÍA

Ship of the Body, Ship of the
Soul voyaging, voyaging, voyaging.

- Walt Whitman

Velho Liberal, zarcão e ferrugem ao lume de água,
cansado desta costa, tua conhecida como a palma do convés,
encostaste-te a um canto da Baía e ancoraste no sono.
Já não te desperta a malta acenando com o palhinhas
às belas marrusses das vilas costeiras,
nem o tempo em que, a escarrar e a tossir,
(Estibordo, bombordo, tantas braças, toda a estaléca àvante!)
à força de pulso, à chicotada de hélice,
lá ias, mastreado de positivismo e lírica retórica,
varando a Costa, corpo de mulher cingido de água.

Mundo familiar aquele: Funcionários, machambeiros,
magaíças, a casada por procuração,
a alacre gente ribeirinha de Inhambane e Mossuril,
a fumar com o lume dentro da boca,
e um poeta que trazia, de contrabando,
três mancheias de bruma e um rouxinol.
Quantos não fecharam já o definitivo e secreto périplo,
desembarcando lá onde não se exigem
malas, mantas, trouxas, esteiras nem cartas de chamada?

Para ti, meu navio de cabelos brancos, velho colono do mar,
vieram o cansaço, o caruncho a roer-te o casco e as articulações,
o catarro roubando-te galhardia aos silvos
que faziam saltar, bater as palmas
às gentes daqui até à Mocímboa.

Foste amarra de emoção passada entre mar e terra,
mas cansaste-te, meu velho.
Olha, arrasta-te, reumático, ao Cemitério dos Navios
e, «com vossa licença, cidadãos»,
ao lado dos mais aderna um tanto,
ajeita a chaminé debaixo da cabeça,
cerra as pálpebras das vigias,
deixa-te morrer, tristemente morrer,
com esse teu nome a evocar descabelados conluios carbonários,
muito medo para o ganho e imensos lunares de suor.

Prometo-te que nós,
deste cais onde viscoso nembo a viagem nos tolhe,
macilentos, impaludados, te acenaremos, todos os dias,
com um lenço e um sorriso de irónica simpatia.

Farewell my old ship! A água te seja leve.


[81]

quarta-feira, maio 19, 2004

Rui Knopfli

MANGAS VERDES COM SAL

Mangas verdes com sal
sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido,
na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo,
à boca ardida,
à crista do tempo,
ao meio da vida.


[80]

terça-feira, maio 11, 2004

Fonseca Amaral

PASSAGEM DE NÍVEL

Para o R.K.

Ali a nossa Pátria mal nascia.
A água salgada, o lodo, a maresia
eram o cuspo, o barro, o olor
com que um Deus jovem e faceto,
ao mesmo tempo urbano, pastoril e marítimo
(Seria branco ou preto?)
nos moldava de todas as cores:
pila ao léu
a verter para o céu
ou prós comboios,
a provocar os mabunos,
lá do Godine,
das entranhas reluzentes.

Shitimela shi ku psá...
Mas a ira deles, tão loiros,
seria só da nossa adâmica nudez
de machinhos inocentes?
A praia do Nhike-Panze
foi um ar que lhe deu...
Joãozinho, você não venha agora
com as suas manias,
que eu bem conheço,
evocar o que não é jamais.

O aterro está muito bem assim.
Cinco chagas!,
Você pode ficar certo duma coisa:
não só lá enterrámos a infância
mais a roupa (tão leve!)
que a envolvia.


[79]
Bibliografia essencial: João Fonseca Amaral, Poemas, INCM

segunda-feira, maio 03, 2004

Suleiman Cassamo

O RASCUNHO

Corri atrás do ardina. É sempre com o coração nas mãos que, pela manhã, corro atrás do ardina. A escrita de um texto não acaba. Vai-se da primeira à última versão, corta-se-lhe as rebarbas, afina-se-lhe a pauta. Mas há sempre uma excrescência, um incongruência que se nos escapa.
A isto, junte-se as gralhas, a má composição, o carácter desfalecido no vigos da página, frases amassadas tipo arroz mal cozido.
É isto que faz a aflição do escriba. Ver como ficou, na face da página, o rosto do seu texto. O escritor de verdade não procura o estrondo do seu nome, mas a certeza de ir descansado, o jornal debaixo do braço, e deitar-se sobre a página aberta, a urdir a próxima aventura.
Nessa manhã, não. Não tive sossego. Ao desfraldar o matutino, no lugar da depurada, enxuta e desgralhada crónica, choco, vejam só, com o rascunho. Sim, o rascunho. Que após fixar o esqueleto do texto, havia amarrotado para a lata do lixo.
Corri até ao jornal: Redacção, Composição, Maquetização, Impressão e Revisão. Nada. Não só não sabiam explicar como também não haviam notado.
Exigi o texto de partida. E, agora que não há mais chumbos de linotipia, a disquete. Essas e demais provas eram fiéis ao original. Posta de lado também a possibilidade de alguém ter recuperado o rascunho, tão esmigalhado o deixara.
Só restava uma hipótese: farto de ser ignorado, o rascunho passara, discreto e rebelde, impregnado debaixo da substância visível do texto em evolução. Só no último momento empurrou a forma eleita, e caminhou para a meta.
Que fazer? Tivesse posses, comprava toda a tiragem e mandava destruir. Mas o matutino já estava na rua, mais esse meu texto cruelmente cru, se alastrando parece queimada.
Fiquei doente, recolhido. Que volte face, a do rascunho. Destruído como se fosse prova de vergonha, agora me esmagava!
Naquela mesma tarde, as cartas começaram a assediar a minha porta, a sitiar-me. Não precisava abrir: me acusariam de abuso de confiança, de abuso de liberdade de expressão, um rol de coisas, enfim, de estender no jornal as minhas cuecas.
Engano meu. «Nunca foste tão sincero contigo próprio», reagiam os leitores, «o mesmo que dizer, connosco.»
«Não imaginamos», lia-se num abaixo-assinado, «quanto se perdeu. Por autocensura de motivação política, moral, ou religiosa. Ou por egoísmo apenas. Aquilo que você cortava no fim. Não imagina quanto se perdeu nisso.»
Afinal, a dinâmica e a fluidez dos textos anteriores eram em detrimento da ira, do sabor agreste do esboço, da tinta do coração.
Um padre comentava: «O rascunho marca o primeiro impulso, a verdade não-manipulada, o que, muitas vezes, o coração diz e a boca cala. Se o Homem falasse rascunho não havia necessidade de confissão.»
Ninguém o dizia de caras, mas a insinuação era clara: rasgue os textos decantados, publique os rascunhos. Isto é, um fórmula antifórmula, uma escrita no sentido anti-horário.
Desnecessária a sugestão. Ao fim e ao cabo, pretendendo escrever direito, se escreve torto. Mesmo este texto, na sua aparência depurada, tal como o Homem dos nossos dias à luz do projecto divino, não passa de um rascunho.


[78]
Bibliografia essencial: Suleiman Cassamo, Amor de Baobá - Crónicas, Caminho

sexta-feira, abril 30, 2004

Orlando Mendes

INSTANTE PARA DEPOIS

A tarde viva está quase vazia
na esplanada represa de sombra morna.
Seis velhos mastigam recordações
com dentes cariados da memória
e o dia-a-dia com as falhas dos dentes.
Olhos distantes sobre os livros
e mãos e pernas entrelaçadas
um casal jovem intimamente suborna
o tempo minuto a minuto seguinte.
Na berma do passeio mufana parado
estende os dedos pedindo quinhentas
nem se sabe porquê e ninguém dá.

Passa um jipe da polícia militar
e um dos velhos mastiga em segredo
que aquilo anda muito pior por lá.
Os dentes e as falhas cessam de mastigar
recordações e a suave cadência dos pulsos
e a moça levanta os olhos húmidos
mufana encolhe os dedos e desliza
inteiro ao sol da rua e assobia
não se sabe porquê e ninguém sente.

Batem horas num relógio distante
e o jovem casal parte subitamente
para o seu primeiro acto de posse.
A tarde fica então mais vazia
com os velhos mastigando a voz sibilada
no dia raso à sombra morna.

Reina a paz na esplanada laurentina


[77]

domingo, abril 25, 2004

Noémia de Sousa

BAYETE

para Rui Knopfli

Ergueste uma capela e ensinaste-me a temer a Deus e a ti.
Vendeste-me o algodão da minha machamba
pelo dobro do preço por que mo compraste,
estabeleceste-me tuas leis
e minha linha de conduta foi por ti traçada.
Construíste calabouços
para lá me encerrares quando não te pagar os impostos,
deixaste morrer de fome meus filhos e meus irmãos,
e fizeste-me trabalhar dia após dia, nas tuas concessões.
Nunca me construíste uma escola, um hospital,
nunca me deste milho ou mandioca para os anos de fome.
E prostituíste minhas irmãs,
e as deportaste para S. Tomé...

- Depois de tudo isto,
não achas demasiado exigir-me que baixe a lança e o escudo
e, de rojo, grite à capulana vermelha e verde
que me colocaste à frente dos olhos: BAYETE?


[76]

quinta-feira, abril 22, 2004

Rui Knopfli

INVENTÁRIO

Rosas inglesas rosa-pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça do ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas

lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta

do No Man’s Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,

velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga

dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.


[75]

quinta-feira, abril 08, 2004

Rui Knopfli

AEROPORTO

É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.


[74]

quarta-feira, abril 07, 2004

Noémia de Sousa

MOÇA DAS DOCAS

A Duarte Galvão

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,

Viemos...
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos....
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos...
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta...

E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...

E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...

Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Poedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!


[73]

segunda-feira, abril 05, 2004

Rui Knopfli

HIDROGRAFIA

São belos os nomes dos rios
na velha Europa.
Sena, Danúbio, Reno são
palavras cheias de suaves inflexões,
lembrando em tardes de oiro fino,
frutos e folhas caindo, a tristeza
outoniça dos chorões.
O Guadalquivir carrega em si espadas
de rendilhada prata,
como o Genil ao sol poente,
o sangue de Federico.
E quantas histórias de terror
contam as escuras águas do Reno?
Quantas sagas de epopeia
não arrasta consigo a corrente
do Dniepre?
Quantos sonhos destroçados
navegam com detritos
à superfície do Sena?
Belos como os rios são
os nomes dos rios na velha Europa.
Desvendada, sua beleza flui
sem mistérios.
Todo o mistério reside nos rios
da minha terra.
Toda a beleza secreta e virgem que resta
está nos rios da minha terra.
Toda a poesia oculta é a dos rios
da minha terra.
Os que cansados sabem todas
as histórias do Sena
e do Guadalquivir, do Reno
e do Volga
ignoram a poesia corográfica
dos rios da minha terra.
Vinde acordar
as grossas veias da água grande!
Vinde aprender
os nomes de Uanétze, Mazimechopes,
Massintonto e Sábié.
Vinde escutar a música latejante
das ignoradas veias que mergulham
no vasto, coleante corpo do Incomáti,
O nome melodioso dos rios
da minha terra,
a estranha beleza das suas histórias
e das suas gentes altivas sofrendo
e lutando nas margens do pão e da fome.
Vinde ouvir,
entender o ritmo gigante do Zambeze,
colosso sonolento da planura,
traiçoeiro no bote como o jacaré,
acordando da profundeza epidérmica do sono
para galgar os matos
como cem mil búfalos estrondeantes
de verde espuma demoníaca
espalhando o imenso rosto líquido da morte.
Vede as margens barrentas, carnudas
do Púngoé, a tristeza doce do Umbelúzi,
à hora do anoitecer. Ouvi então o Lúrio,
cujo nome evoca o lírio europeu
e que é lírico em seu manso murmúrio.
Ou o Rovuma acordando exóticas
lembranças de velhos, coloniais
navios de roda revolvendo águas pardacentas,
rolando memórias islâmicas de tráfico e escravatura.


[72]

quinta-feira, abril 01, 2004

João Dias

INDIVÍDUO PRETO

A classificação dos concursos para chefe de secção está no gabinete do sub-director dos Caminhos de Ferro, claramente explícita e assinada pelos membros do júri. Falta só a ratificação por ordem do sub-director.
Tudo se passa, aparentemente, como se se tratasse apenas de uma rubrica sobre mais um dos burocráticos diplomas do funcionalismo. À porta, assoma meio gago, a cruzar as mãos com as palavras, desastradamente pesaroso por importunar as lazeirices do senhor sub-director:
- Era o papel dos concursos para metermos nas máquinas, que a «ordem de serviço» está quase impressa – diz o Manuel da Silva, empregado da tipografia privativa.
- Olhe... espere. Ou vá-se embora, que não vi o assunto ainda.
Sobre a secretária as decisões do concurso teimam em desmenti-lo:
- Vá-se embora!
O Manuel da Silva, a dobrar o pescoço, afasta os olhos da mesa e retira-se.
Há em toda a tipografia uma enervação provocada pelas demoras do sub-chefe. O trabalho não avança, e a ordem tem de sair. Não haverá quem perceba que os atrasos podem vir dos senhores chefes. O pior não está nessa compreensão, mas na certeza, quase matemática, de que a repreensão registada cairá sobre o pessoal inferior. E nenhum deles se atreverá a culpar os chefes.
A vida dos operários e dos subalternos esfola. Às vezes, nas horas de trabalho, cruzam os braços e lêem nos anúncios a secção das «ofertas e procuras» e sobretudo a dos «empréstimos sobre penhores». Trabalham em horas extraordinárias porque tudo lhes vem tarde, e tem de sair normalissimamente a tempo. E sai, apesar da tesouraria jogar o slogan de que «não há verba». Fica-lhes a festa a dez e doze horas de serviço só parcialmente remuneradas. O tempo, por seu lado, faz hábitos, e ilude organização racional do trabalho. Em determinados dias, os operários por impulso mais do que por lógica, reprovam entre eles, a meia-voz, aquelas arbitrariedades.
Hoje, o senhor M. da Silva não convence os companheiros da existência de um motivo justo dos atrasos. Faltam-lhe argumentos.
- Estive no gabinete do chefe...
Levanta a sobrancelha esquerda, tosse e crê na sua importância, repetindo em pensamento: «estive no gabinete do chefe»!!! Depois continua, mentindo um pouco também:
- ... mostrou-me um montão de assuntos urgentes e prometeu atender-nos em primeiro lugar.
Quando o Manuel da Silva pensa acrescentar adjectivos elogiosos ao nome do sub-director encontra olhos de gargalhada a cortarem-lhe a voz. Como não é redondamente bruto, pega no jornal e espera que do silêncio que então fica, nasça outro motivo de conversa.
O senhor Meireles noutra sala ao lado, levanta-se bruscamente e abre a janela. Primeiro andar, nas traseiras da repartição donde se vê a avenida de Sá da Bandeira e todo o seu movimento. Na rua, compõe o macadame uma dúzia de negros com regadores de alcatrão e troncos semi-nus em suas camisas rotas. Talvez alguns, a maioria, se sinta feliz nessa insuficiência de vida: trabalho de besta e arroz. A tragédia do homem só nasce da consciência de se bastar e querer ir além, de ver na felicidade o começo da infelicidade. Os negros porém, deviam ser todos dóceis, activos como máquinas, e com a inteligência necessária apenas à satisfação dos desejos dos brancos. Os que assim não são persistem só para complicar as coisas. Imaginem que por causa do raio de um destes, está o serviço pendente. Não se devia interpretar tanto à letra o Humanismo nas colónias. A própria existência das colónias, contradiz por si o Humanismo.
Da sala ao lado, entrou o aspirante Ferreira com requerimentos a despacho. O Meireles recebe o novo fardo.
Senta-se à mesa. Entretanto o cartão de visita do Senhor Arcebispo chama-o para fora da papelada trazida pelo aspirante. Ainda na véspera o senhor D. José viera falar-lhe no caso do concurso. «Não venho, propriamente meter-lhe uma cunha; isso, em quaisquer circunstâncias repugnaria à minha dignidade de homem e de representante do Justo». Vinha, com a razão nas mãos, mostrar-lhe a necessidade de defender o património do colonizador. O caso era simples: o negro António Neves ascendeu a uma posição grada no funcionalismo Qualquer injustiça sobre ele podia habilmente explorar-se para tentar agitar negros. As perseguições racistas acentuavam-se; a habilidade dos melindrados e a persistência de injustiças causariam na massa negra, não a compreensão clara da pata opressora, mas um mal-estar colectivo, uma vontade de dizer «Não!», a pulmões cheios, de escoicinhar sem saber como, nem em quem. Se os negros civilizados fossem contentados no mínimo necessário, a evolução negra até à compreensão da verdade seria muito morosa. Os próprios beneficiados, egoisticamente, trairiam o bem-estar de milhões de irmãos. A questão estava toda nisto; não bulir com os negros civilizados, por uma questão de conveniência não muito remota.
Ao despedir-se, o Arcebispo voltou a insistir:
«... Lembre-se de que as autoridades superiores enfileiram a meu lado nesse pensar. E olhe que não venho armar em defensor dos negros. É que é de toda a conveniência que proceda consoante...»
A mão beijada, o Arcebispo julgou triunfante a sua opinião, e retirou-se.
O Meireles largou o cartão de visita e voltou à janela. Todas as palavras do padre martelando-lhe a memória, lhe pareceram ilógicas. Como nomear um negro, que os futuros subordinados brancos não aceitarão como superior? O Neves é o segundo classificado e já vítima de ratifícios racistas do júri. Há dez vagas de preenchimento urgente. Escasseiam meios de eliminar o concorrente. A arbitrariedade não avançará agora nem um centímetro sem escândalo.
«Se fosses como teus irmãos, mero carregador de cais, ou desentupidor de fossas!... não levantarias novos problemas a ti e a nós. A vida seria suavemente menos alcantilada. Seria feliz porque eras do teu mundo, e te bastavas nele.
O Meireles dá dois murros no parapeito como que para mudar o ângulo de visão dos seus pensamentos. A verdade é que o caso já não é de lamentos. Tem a naturalidade fria das leis físicas. O subdirector esgravata as unhas da mão esquerda, com a unha pontuda do mínimo da direita. Uma sujidade escura cai perdida...
O Neves tinha bom comportamento como cidadão e como funcionário. Na Administração Civil e segurança pública de nada serviria essa comportamento. Bastava a cor, como cartão de rejeição. Nas outras repartições... enxameavam aqueles bicos de obras. Negros a quererem ir além do que uma condescendente colonização permitia.
O Meireles olha com ódio os trabalhadores da rua. «São todos o mesmo!» Volta a sentar-se e, inseguro, tine a campainha, a que o servente preto Zafania acode. A farda caqui, os olhos abertos, à espera.
- Costuma pedir-se licença, meu cão! Rua!!! Entra outra vez e com mais respeito.
O Zafania aparvalha-se.
O subdirector precisava falar aos componentes do júri. A ordem de classificação dos concursos castigava-lhe o cérebro. Nevralgia! Lembra as últimas recomendações do Arcebispo... «olhe que não venho armar em defensor dos negros. Mas é de toda a conveniência que proceda consoante...» Os negros das estradas, os serventes, os moleques de casa, o Neves, baralham-se-lhe num xadrez de psicologia e aspectos físicos diferentes, que ele mantém unidos debaixo da raça.
NEGROS!...


O Manuel da Silva e companheiros, lá apresentaram a ordem de serviço no dia próprio. Tinha ao alto o nome da repartição logo abaixo de «Serviço da República». Vinham nomeações para capatazes, transferências de praticantes de escritório e novas formas de admissão a concursos públicos enviadas pelas autoridades superiores da Administração Colonial. E acabava nesta frase habitual: «A Bem da Nação».
Dizia-se que o Subdirector nada decidira sobre os concursos de primeiros oficiais, aguardando a vinda de férias do Director para dali a um mês.


Algum tempo depois, numa Ordem de Serviço, o Subdirector era castigado por incúria na resolução de problemas prementes da repartição.


[71]

terça-feira, março 30, 2004

Noémia de Sousa

NOSSA VOZ

Ao J. Craveirinha

Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara
sobre o branco egoísmo dos homens
sobre a indiferença assassina de todos.
Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão
nossa voz ardente como o sol das malangas
nossa voz atabaque chamando
nossa voz lança de Maguiguana
nossa voz, irmão,
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade
e revolucionou-a
arrastou-a como um ciclone de conhecimento.

E acordou remorsos de olhos amarelos de hiena
e fez escorrer suores frios de condenados
e acendeu luzes de esperança em almas sombrias de desesperados...

Nossa voz, irmão!
nossa voz atabaque chamando.

Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança
nossa voz farol em mar de tempestade
nossa voz limando grades, grades seculares
nossa voz, irmão! nossa voz milhares,
nossa voz milhões de vozes clamando!

Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas,
nossa voz gorda de miséria,
nossa voz arrastando grilhetas
nossa voz nostálgica de ímpis
nossa voz África
nossa voz cansada da masturbação dos batuques da guerra
nossa voz gritando, gritando, gritando!
Nossa voz que descobriu até ao fundo,
lá onde coaxam as rãs,
a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo,
da simples palavra ESCRAVIDÃO:

Nossa voz gritando sem cessar,
nossa voz apontando caminhos
nossa voz xipalapala
nossa voz atabaque chamando
nossa voz, irmão!
nossa voz milhões de vozes clamando, clamando, clamando.


[70]

quarta-feira, março 24, 2004

Grabato Dias

LAURENTINA CESARINIANA 2

Mestiços somos nós todos
e eu também
mestediços visigodos
tinham um palato a modos
não muito por aí além.

Mestiços somos nós todos
judeus e mouros
e ainda bem.


[69]

terça-feira, março 23, 2004

Rui Knopfli

DAWN

Agónica noite estremece
e despedaça-se
lá fora em chuva
nas vidraças.
Das sombras, das solidões
dos recantos recônditos
da noite e da chuva
saem homens.
Pela crosta da terra passa
um frémito de arrepio.
Chove.
Chove em África.
É noite
É noite em África.
Mão desmedida ergue-se
no breu,
corpo da terra que as águas
fecundam, impregnam.
Silêncios, hesitações,
sono de séculos, jugos,
racham em surdina.
Jogamos bridge na tepidez
do living,
reclinamo-nos na morna
penumbra erótica
dos cinemas,
ou dormimos em calma
digestão.
Para lá
da noite angustiada
monótono acalanto ergue
a voz.
No inescrutável, nas sombras,
nos recantos recônditos de agónica noite
África desperta...


[68]

segunda-feira, março 22, 2004

Há um lugar reservado à sombra dos palmares para alguém que queira colaborar neste blog. Contacto: asombradospalmares@hotmail.com

quinta-feira, março 18, 2004

Rui Knopfli

MESQUITA GRANDE

Neste raso Olimpo argamassado em febre
e coral, o Deus maior sou eu. Por mais
que as pedras, os muros e as palavras afirmem
outra coisa, por mais que me abram o corpo
em forma de cruz e me submetam a árida

voz às doces inflexões do cantochão latino,
por mais que a vontade de pequenos deuses
pálidos e fulvos talhe em profusas lápides
o contrário e a sua persistência os tenha
por Senhores, o sangue que impele estas veias

é o meu. Pórticos, frontarias, o metal
das armas e o Poder exibem na tua sigla
a arrogância do conquistador. Porém o mel
da tâmaras que modula o gesto destas gentes,
o cinzel que lhes aguça a madeira dos perfis,

a lenta chama que lhes devora os magros rostos,
meus são. Dolorido e exangue o próprio
Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada

magreza de um velho cojá asceta.
Raça de escribas, mandai, julgai, prendei:
Só Alah é grande e Maomé o seu profeta.


[67]

domingo, março 07, 2004

Rui Knopfli

II. PÁTRIA

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nome por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as paredes. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial,
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.


[66]

quarta-feira, março 03, 2004

José Craveirinha

TROUXA DE 8 COUVES

Srª D. Josefina Amélia dos Prazeres Santos Tembe
viajando no tejadilho do calhambeque "Chapa 100"
ia à cidade de Maputo vender
uma trouxa de 8 couves
quando aquele frufru
da rajada não deixou.


[65]

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

José Craveirinha

GENTE A TROUXE-MOUXE

Gente a trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheire a bafo
de bazucadas.

Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
gusados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.

Gente dessedentando martírios
nos charcos
se chover.
...
ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.

[64]

sábado, fevereiro 21, 2004

Campos Oliveira

O PESCADOR DE MOÇAMBIQUE

- Eu nasci em Moçambique
de pais humildes provim,
a côr negra que eles tinham
é a côr que tenho em mim:
sou pescador desde a infância,
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei.

Antes que o sol se levante
eis que junto à praia estou;
se ao repoizo marco as horas
à preguiça não as dou;
em frágil casquinha leve,
sempre longe do meu lar,
ando entregue ao vento e às ondas
sem a morte receiar.

Ter continuo a vida em risco
é triste coisa – sei que é!
mas do mar não teme as iras
quem em Deus depõe a fé;
é pequena a recompensa
da vida custosa assim;
mas se a fome não me mata
que me importa o resto a mim?

Vou da Cabaceira às praias,
atravesso Mussuril,
traje embora o céu d’escuro,
ou todo seja d’anil;
de Lumbo visito as águas
e assim vou até Sancal,
chegou depois ao mar-alto
sopre o norte ou ruja o sul.

Só à noite casca ataco
para o corpo repousar,
e ao pé da mulher qie estimo
ledas horas ir passar:
da mulher doces carícias
também quer o pescador,
pois d’esta vida os pezares
faz quasi esquecer o amor!

Sou pescador desda a infância
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei;
e em quanto tiver os braços,
a pá e a casquinha ali,
viverei sempre contente
neste lidar que escolhi.


[63]

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

José Craveirinha

MINA ANTIPESSOAL

O avançado Jossias “Ponta Esquerda”
terror dos guarda-redes
agora já possui três pés
mas não chuta com nenhum.

Foi uma mina antipessoal
que o pé canhoto não driblou
num carreiro do mato.

Agora uma perna da calça oscila ao vento
enquanto duas pernas suplentes
são próteses de madeira.

As guerras dos homens
desenvolvem o desporto
com próteses para o povo.

Herói de golos de antologia
Jossias, o “Ponta Esquerda” de Fura-Rede
já não tem admiradores.

Palmas e autógrafos quando passa?
Do seu clube nem nada
e autógrafos só no hospital
ou quando o neo-realismo
do pé esquerdo de voz ausente
dá óptima compensação
com autógrafos no hospital
quando preenche e assina:
Jossias ex-Ponta Esquerda
Profissão: indigente.
Clube: Mina Antipessoal.


[62]

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Mia Couto

(ESCRE)VER-ME

nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar


[61]

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Noémia de Sousa

JUSTIFICAÇÃO

Se o nosso canto negro é simultaneamente
baço e ameaçador como o mar
em noites de calmaria;
se a nossa voz é rouca e agreste
só se abrindo em gritos de rebeldia;
se é ao mesmo tempo amarga e doce a nossa poesia
como suco de nhantsumas silvestres;
se é encovado e profundo o nosso olhar
rasgando-se impávido à luz do dia;
se são disformes e gretados nossos pés espalmados
de trilhar caminhos ingratos;
se a nossa alma se fechou para a alegria
e só dá hospedagem ao ódio e à revolta
- não nos culpes a nós, irmão vindo das ruas da cidade.

Que entre nós e o sol se interpuseram
grades feias de escravidão,
grades negras e cerradas a impedir-nos de tostar
de verdadeira felicidade,


Mas ai, irmão vindo das ruas da cidade!
Nosso firme sentido de justiça, nossa indómita vontade a nascer
nossa miséria comum vestida de sacas rotas e imundas,
nossa própria escravidão
serão o calor e o maçarico que fundirão
para sempre as grossas colunas que nos zebravam a vida inteira
e lhe arrancaram todo o jeito doce e inexprimível de vida.


[60]

quinta-feira, janeiro 29, 2004

Rui Knopfli

NENHUM MONUMENTO

Não são aparentes em ti as marcas de grandeza
nenhum monumento desfigura
ou altera a monotonia sem convulsões
do teu rosto quase anónimo.

A escassez de ogivas, arcobotantes,
rosáceas, burilados portais, cobra-la tu
na gravidade das tuas sombras
e do teu silêncio. Não vem sequer

da tua voz a opressão que cerra
as almas de quantos de ti
se acercam. Não demonstras,

não afirmas, não impões.
Elusiva e discretamente altiva
fala por ti apenas o tempo.


[59]

sábado, janeiro 24, 2004

Alberto de Lacerda

PONTA DA ILHA

Ó corpos dados com melodia
As melodias do meu ardor!
Ó pretas lindas! Ponta da Ilha!
Vestem soberbos panos de cor.
Deles se despem com grã doçura,
Vénus despida no próprio mar.
É com doçura que negras, lindas,
Desaparecem no meu calor.


[58]

domingo, janeiro 18, 2004

Nelson Saúte

MULHER DE M'SIRO

O m'siro
encantamento dos meus olhos
perfaz a tua insular imagem.
No litoral do teu corpo
a apoteótica espuma
do orgasmo das ondas.
Ó júbilo na falésia do canto.

[57]

terça-feira, janeiro 13, 2004

(Canção Popular)

DE LONGE ESTA ILHA PARECE PEQUENA

De longe esta Ilha parece pequena
Esta Ilha é grande.
Tem longa história desde os habitantes aos seus monumentos
Não nos é possível contar-vos tudo quanto temos
Pois há outros que querem também falar-vos
Se ainda quereis ouvir algos nossos
ficais muito tempo nesta Ilha.
Assim mostrar-vos-iam a rua de fogo
onde vós nunca chegastes.


[56]

domingo, janeiro 11, 2004

Virgílio de Lemos

OUAMISI

Será desta luz d'equinócio o manto verde azul
quem te confere teu ar de canto singular?
Será que o mistério vem mais da luz iridiscente
que de tua alma errante em busca da vertigem?

Etiópia Sudão Novo Mundo e Extremo Oriente
escravos e canelas, baixelas de prata bordados.
Será que posso falar de omnipresente osmose
entre o sagrado e o grito mineral da carne?

Efebos e mulheres, conquistadores e naus
entre o simulacro de uns, de outros a firmeza,
neste santuário de almas, a génese irrompe

como se o génio da memória e da paisagem
se beijassem na imediatez do que reclamo
e do oceano imprevisível, nascesses tu, ilha.

[55]
Bibliografia essencial: Virgílio de Lemos, Para Fazer Um Mar, Instituto Camões

domingo, janeiro 04, 2004

Luís Carlos Patraquim

MUHÍPITI

É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.


[54]