domingo, outubro 29, 2006

João Paulo Borges Coelho

CRÓNICA DA RUA 513.2 (excerto/2)

Tomar banho era outro problema. Faziam-no no quintal, entre quatro paliçadas de caniço com metro e pouco de altura, tirando água do balde e lançando-a sobre o corpo. No fundo, Josefate habituara-se já à situação, agradava-lhe tomar banho apreciando ao mesmo tempo o movimento do bairro, as mulheres a caminho do mercado, as crianças arrastando-se para a escola ainda ensonadas. Mas para Antonieta o banho era coisa mais complicada. Tinha de agachar-se para que os seus volumes não fossem vistos do exterior, e mesmo o facto de não o serem não impedia que fossem adivinhados. A situação não era portanto a melhor para a dignidade dos Mbeves. As suas cabeças emergiam molhadas atrás da paliçada de caniço, denunciando gestos que são sempre íntimos qualquer que seja a cultura, a circunstância e a condição. ‘Lá está um dos Mbeves tomando banho! Ah, gente sem descrição!’, diziam os transeuntes. Depois, sair do banho era outra preocupação. O chão encharcava-se de águas estagnadas, sobretudo se chovia, águas que levavam uma eternidade a escoar-se para as profundezas da terra, nunca secando por completo, ficando sempre uma lama imunda e pestilenta. Um caminho de pedras soltas ligava a paliçada à casa, e lá iam os Mbeves saltitando de pedra em pedra para não sujar os pés, limpos e lavados de fresco, a escorrer água, mas parecendo assaltantes seminus realizando os seus furtivos gestos.


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segunda-feira, outubro 23, 2006

Rui de Noronha

SONETO

Eu tenho a pagar 10 e na carteira
Apenas tenho 8. Eis a arrelia.
Eis-me buscando em mente uma maneira
De pagar o que devo em demasia.

E fico às vezes nisto todo o dia,
Um dia inteirinho em estúpida canseira.
Se busco distrair-me, de vigia,
Olha-me a rir a dívida grosseira.

E entretanto na rua vão passando
Carros de luxo, altivos salpicando
O lodaçal dos trilhos sobre mim…

E sinto, na revolta, o algarismo,
Do trono do brutal capitalismo,
A rir de nós, os bobos do festim!


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domingo, outubro 15, 2006

João Paulo Borges Coelho

CRÓNICA DA RUA 513.2 (excerto/1)

Onde já se viu o despautério de chamar Salazar a uma vila que o velho ditador nunca sequer visitou? Despautério de lhe dar o nome de quem nunca por ela se interessou a não ser talvez fugazmente, quando um funcionário zeloso lhe disse: ‘Excelência, demos o seu nome a tal longínquo local’. E ele, modesto, na sua voz de falsete: ‘Não era preciso tanto, mas está bem: o que está feito, não vamos agora voltar atrás que é sinal de titubeação’. Uma vila tão bela e feia quanto as demais, Mas olha-se para ela e salta à vista que só podia ser Matola, nunca Salazar.


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