domingo, abril 30, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / A FORÇA DO MAR DE AGOSTO (excerto)

(…) e quando o primeiro pescador empurrou o seu xitatarru pela areia da praia, ainda a azulava a madrugada, verificou com surpresa que esse peixe de pau não ganhava a leveza que normalmente ganha no contacto com a onda. Pelo contrário, continuava a pesar, apesar de irem já longe os dois pela dita onda fora, deixando nela o rasto contínuo do barco pontilhado nos lados pelos gatafunhos que os pés do dito pescador deixavam, no esforço de empurrar. Notou também que a sua pele não brilhava como normalmente o faz quando é lambida pela água. Continuava baça como acorda todos os dias, antes que o trabalho a aqueça e abrilhante.


[212]

terça-feira, abril 25, 2006

Ana Mafalda Leite

NATURALIDADE

(UMA CARTA A RUI KNOPFLI)


Eu, meu caro Rui Knopfli, eu caso-me à agrura das micaias e das rosas, ao roxo das noites lentas e às luas do dois hemisférios. Do sul ao norte em espiral me move o coração em índico interior, a intensa lentidão dos sentidos adormecidos por essas aves estranhas que me povoam os sentidos de asas bem reais.
chamem-me europeia ou africana, que fazer senão calar? Meus versos livres, livres xingombelas, livres pomos, voam sem chão, neste chão que trago por dentro da casa móvel que atravessa o sonho. Muito por dentro de todas as paisagens acorda aí esse teu, este meu, quebranto dolente, luz que as tardes em brasa levantam na alma acordada em seu abrupto amanhecer. É provável e é certo ser este meu corpo entrançado de liana e liamba uma trepadeira de nuvens em que o arco íris morde a cauda de muitos céus em desvario, porque a alma sem sossego acasala seres bifrontes, monstros de um hermes apátrida.
que pátria a de um poeta senão uma língua bífida e em fogo, senão um veneno redentor de mamba, enroscada dor nesse corpo babel em chama anunciado?
há no entanto uma terra e uma pátria em que pouso devagar, me reconheço e desconheço, escriba acocorado enrubescendo a língua de amorosos sabores, de vibrados ritmos, é a tua pátria de versos ó Rui, a tua mafalala entumescida José, a tua sensual arquitectura a oriente, Eduardo, ó príncipe dos poetas, o teu rumo silencioso e manso Artur, a escultura maconde da tua voz magoada Noémia, teu rendilhar de pemba azul Glória, a monção elegíaca e trágica, dolorosa dos teus blues, Patraquim, teu mar ao norte em ilhas utópicas Virgílio, e em arca de noé, essa fábula grotesca de Grabato arrebatando os pontos cardeais num chão desgarrado a Filimones, mes em nós crescido até à palma primeira de todos os sons.
Acredita, a terra-mar que em nossas línguas caminha é naturalidade obscena, pátria dividia em crónicas da peste, nascimento incestuoso de múltiplas mães, em nós úbere o som da xipalapala.
lancinado eco do fim das tardes, misterioso som, morro de muchém crescido da terra, desventrando asas em voluta, lento voo em sombra acesa, pátria minha, passaporte,
naturalidade, só uma, a poesia.


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Bibliografia essencial: Ana Mafalda Leite, Livro das Encantações, Caminho.

sexta-feira, abril 21, 2006

Carlos Gil

PRINCESA DAS DUAS CIDADES

Lá, naquele tempo em que não se viam capulanas nas varandas das avenidas, garrindo as acácias e os jacarandás usurpadores das cores turísticas, lá naquele tempo em que a naturalização da cidade estava tão longe como distava o terreiro de onde saíam naus com decretos e leis, chiar de madeiras velhas gretadas pela História que a água dos oceanos traçou.

Lá, onde os machimbombos sempre cheios quando não era dia de praia faziam sempre rumo aos subúrbios. Lá, naquele tempo em que havia duas cidades e o cimento duma ganhava fungos quando o caniço e o zinco o confrontavam, Norte e Poente, tanto, que o Sul era dos arranha-céus e a Este o mar chamava.

quando amar era perigoso se, no orgasmo, os pêlos dos amantes não brilhassem ambos em pálido rosa imperial, ou tinha tabela miscigenada em moeda com a prata da esfera armilar, repúblicos vinte escudos. Naquele tempo, lá.

nem tinham sido inventados os chapas, pois as capulanas só vinham ao cimento vender amendoim torrado e maçaroca assada, peixe e papaias no mercado. Lá, princesa das duas cidades...

O tempo caducou-se. Vieram as capulanas às varandas e penduraram-se às janelas, garrida nova flora da cidade que esmagou os jacarandás e as acácias, velho álbum de postais em que a abertura da lente não fora feita em formato technicolor: faltava-lhe a cor das capulanas quando a objectiva se virava aos céus para focar as torres, ou se espraiava colina abaixo no longo rectilíneo das árvores aveninadas. Em baixo, sorria o mar, esse fotogénico amante que a todas beija e ergue maliciosas ondas para lamber, guloso, as cores quentes da sua capulana.

(lá, naquele tempo)

Eu vim de lá. Vivi lá e lá li livros sobre fórmulas alquimísticas do viver, que não podia entender sem perceber primeiro que a areia dourada que nas suas folhas se entranhava, que as manchas das mangas que me sujavam a camisa, essas, eram as primeiras letras a ler, a cartilha da cidade. Das duas cidades... lá, naquele tempo...

– e bastava saber olhar como sabia ler. Se o tivesse feito, então perceberia que as frondosas copas das árvores eram flores dum jardim com amos e empregados, que a areia da praia era grão que só alvas pás moinhavam, pés de longe pois da cidade que raramente os via calçados.

Lá, naquele tempo, eu fartei-me de ler livros e chumbei, não passei o exame: eu não sabia ler o livro d'A Princesa das Duas Cidades. Naquele tempo eu, estando lá, não estava: não via a luz das capulanas ondeando nos prédios, brilho que se lia mais além do vermelho das acácias e do azul dos jacarandás, cores que cegavam.


[210]

domingo, abril 09, 2006

Rui Knopfli

POSTERIDADE

Um dia eu, que passei metade
da vida voando como passageiro,
tomarei lugar na carlinga
de um monomotor ligeiro
e subirei alto, bem alto,
até desaparecer para além
da última nuvem. Os jornais dirão:
Cansado da terra poeta
fugiu para o céu. E não
voltarei de facto. Serei lembrado
instantes por minha família,
meus amigos, alguma mulher
que amei verdadeiramente
e meus trinta leitores. Então
meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.


[209]

sexta-feira, abril 07, 2006

Brian Tio Ninguas

A JOSINA, HEROÍNA SORRIDENTE

Viajarei até onde a tua heroicidade marchou
e guardarei as palavras para mim como as guardaste
e cantarei o patriotismo como fez o teu pulso
e viverei o amor dos homens como tu o viveste
e arderei em todo o meu fervor humano
e se a terra me cobrir
aves virão desenterrar-me, farão uma roda
e pondo-me no meio dela
entoarão hinos de vida e comerão flores
e eu devorarei estrelas.

[208]

domingo, abril 02, 2006

Carneiro Gonçalves

CONTO DE ACHIRIUA (excerto)

Ora uma vez (contam os achiriuas) havia um penedo mesmo no pino da montanha. Morreu de amor. O penedo era acessível, a escalada fácil. Uma árvore irrompia brusca do seio do penedo, esguedelhada, uma árvore que amava o penedo com força, mais do que um homem ama uma mulher. Amava-o tanto que irrompia, meiga, do seio dele, já aberto, conformado, alegre até com a fúria que o dilacerava, parcelava, dividia. Quando o vento, zoeira de todo, experimentava, rajada após rajada, a solidez invulgar daquele amor estranho, observava por entre assobiadelas os beijos seguidinhos da árvore no peito forte do penedo, inamovível, todo entregue ao cuidado de a defender dos suspiros boémios do vento do vento amalandrado.


[207]
Bibliografia essencial: Carneiro Gonçalves, A Escrita de Anton, Quasi