quinta-feira, abril 01, 2004

João Dias

INDIVÍDUO PRETO

A classificação dos concursos para chefe de secção está no gabinete do sub-director dos Caminhos de Ferro, claramente explícita e assinada pelos membros do júri. Falta só a ratificação por ordem do sub-director.
Tudo se passa, aparentemente, como se se tratasse apenas de uma rubrica sobre mais um dos burocráticos diplomas do funcionalismo. À porta, assoma meio gago, a cruzar as mãos com as palavras, desastradamente pesaroso por importunar as lazeirices do senhor sub-director:
- Era o papel dos concursos para metermos nas máquinas, que a «ordem de serviço» está quase impressa – diz o Manuel da Silva, empregado da tipografia privativa.
- Olhe... espere. Ou vá-se embora, que não vi o assunto ainda.
Sobre a secretária as decisões do concurso teimam em desmenti-lo:
- Vá-se embora!
O Manuel da Silva, a dobrar o pescoço, afasta os olhos da mesa e retira-se.
Há em toda a tipografia uma enervação provocada pelas demoras do sub-chefe. O trabalho não avança, e a ordem tem de sair. Não haverá quem perceba que os atrasos podem vir dos senhores chefes. O pior não está nessa compreensão, mas na certeza, quase matemática, de que a repreensão registada cairá sobre o pessoal inferior. E nenhum deles se atreverá a culpar os chefes.
A vida dos operários e dos subalternos esfola. Às vezes, nas horas de trabalho, cruzam os braços e lêem nos anúncios a secção das «ofertas e procuras» e sobretudo a dos «empréstimos sobre penhores». Trabalham em horas extraordinárias porque tudo lhes vem tarde, e tem de sair normalissimamente a tempo. E sai, apesar da tesouraria jogar o slogan de que «não há verba». Fica-lhes a festa a dez e doze horas de serviço só parcialmente remuneradas. O tempo, por seu lado, faz hábitos, e ilude organização racional do trabalho. Em determinados dias, os operários por impulso mais do que por lógica, reprovam entre eles, a meia-voz, aquelas arbitrariedades.
Hoje, o senhor M. da Silva não convence os companheiros da existência de um motivo justo dos atrasos. Faltam-lhe argumentos.
- Estive no gabinete do chefe...
Levanta a sobrancelha esquerda, tosse e crê na sua importância, repetindo em pensamento: «estive no gabinete do chefe»!!! Depois continua, mentindo um pouco também:
- ... mostrou-me um montão de assuntos urgentes e prometeu atender-nos em primeiro lugar.
Quando o Manuel da Silva pensa acrescentar adjectivos elogiosos ao nome do sub-director encontra olhos de gargalhada a cortarem-lhe a voz. Como não é redondamente bruto, pega no jornal e espera que do silêncio que então fica, nasça outro motivo de conversa.
O senhor Meireles noutra sala ao lado, levanta-se bruscamente e abre a janela. Primeiro andar, nas traseiras da repartição donde se vê a avenida de Sá da Bandeira e todo o seu movimento. Na rua, compõe o macadame uma dúzia de negros com regadores de alcatrão e troncos semi-nus em suas camisas rotas. Talvez alguns, a maioria, se sinta feliz nessa insuficiência de vida: trabalho de besta e arroz. A tragédia do homem só nasce da consciência de se bastar e querer ir além, de ver na felicidade o começo da infelicidade. Os negros porém, deviam ser todos dóceis, activos como máquinas, e com a inteligência necessária apenas à satisfação dos desejos dos brancos. Os que assim não são persistem só para complicar as coisas. Imaginem que por causa do raio de um destes, está o serviço pendente. Não se devia interpretar tanto à letra o Humanismo nas colónias. A própria existência das colónias, contradiz por si o Humanismo.
Da sala ao lado, entrou o aspirante Ferreira com requerimentos a despacho. O Meireles recebe o novo fardo.
Senta-se à mesa. Entretanto o cartão de visita do Senhor Arcebispo chama-o para fora da papelada trazida pelo aspirante. Ainda na véspera o senhor D. José viera falar-lhe no caso do concurso. «Não venho, propriamente meter-lhe uma cunha; isso, em quaisquer circunstâncias repugnaria à minha dignidade de homem e de representante do Justo». Vinha, com a razão nas mãos, mostrar-lhe a necessidade de defender o património do colonizador. O caso era simples: o negro António Neves ascendeu a uma posição grada no funcionalismo Qualquer injustiça sobre ele podia habilmente explorar-se para tentar agitar negros. As perseguições racistas acentuavam-se; a habilidade dos melindrados e a persistência de injustiças causariam na massa negra, não a compreensão clara da pata opressora, mas um mal-estar colectivo, uma vontade de dizer «Não!», a pulmões cheios, de escoicinhar sem saber como, nem em quem. Se os negros civilizados fossem contentados no mínimo necessário, a evolução negra até à compreensão da verdade seria muito morosa. Os próprios beneficiados, egoisticamente, trairiam o bem-estar de milhões de irmãos. A questão estava toda nisto; não bulir com os negros civilizados, por uma questão de conveniência não muito remota.
Ao despedir-se, o Arcebispo voltou a insistir:
«... Lembre-se de que as autoridades superiores enfileiram a meu lado nesse pensar. E olhe que não venho armar em defensor dos negros. É que é de toda a conveniência que proceda consoante...»
A mão beijada, o Arcebispo julgou triunfante a sua opinião, e retirou-se.
O Meireles largou o cartão de visita e voltou à janela. Todas as palavras do padre martelando-lhe a memória, lhe pareceram ilógicas. Como nomear um negro, que os futuros subordinados brancos não aceitarão como superior? O Neves é o segundo classificado e já vítima de ratifícios racistas do júri. Há dez vagas de preenchimento urgente. Escasseiam meios de eliminar o concorrente. A arbitrariedade não avançará agora nem um centímetro sem escândalo.
«Se fosses como teus irmãos, mero carregador de cais, ou desentupidor de fossas!... não levantarias novos problemas a ti e a nós. A vida seria suavemente menos alcantilada. Seria feliz porque eras do teu mundo, e te bastavas nele.
O Meireles dá dois murros no parapeito como que para mudar o ângulo de visão dos seus pensamentos. A verdade é que o caso já não é de lamentos. Tem a naturalidade fria das leis físicas. O subdirector esgravata as unhas da mão esquerda, com a unha pontuda do mínimo da direita. Uma sujidade escura cai perdida...
O Neves tinha bom comportamento como cidadão e como funcionário. Na Administração Civil e segurança pública de nada serviria essa comportamento. Bastava a cor, como cartão de rejeição. Nas outras repartições... enxameavam aqueles bicos de obras. Negros a quererem ir além do que uma condescendente colonização permitia.
O Meireles olha com ódio os trabalhadores da rua. «São todos o mesmo!» Volta a sentar-se e, inseguro, tine a campainha, a que o servente preto Zafania acode. A farda caqui, os olhos abertos, à espera.
- Costuma pedir-se licença, meu cão! Rua!!! Entra outra vez e com mais respeito.
O Zafania aparvalha-se.
O subdirector precisava falar aos componentes do júri. A ordem de classificação dos concursos castigava-lhe o cérebro. Nevralgia! Lembra as últimas recomendações do Arcebispo... «olhe que não venho armar em defensor dos negros. Mas é de toda a conveniência que proceda consoante...» Os negros das estradas, os serventes, os moleques de casa, o Neves, baralham-se-lhe num xadrez de psicologia e aspectos físicos diferentes, que ele mantém unidos debaixo da raça.
NEGROS!...


O Manuel da Silva e companheiros, lá apresentaram a ordem de serviço no dia próprio. Tinha ao alto o nome da repartição logo abaixo de «Serviço da República». Vinham nomeações para capatazes, transferências de praticantes de escritório e novas formas de admissão a concursos públicos enviadas pelas autoridades superiores da Administração Colonial. E acabava nesta frase habitual: «A Bem da Nação».
Dizia-se que o Subdirector nada decidira sobre os concursos de primeiros oficiais, aguardando a vinda de férias do Director para dali a um mês.


Algum tempo depois, numa Ordem de Serviço, o Subdirector era castigado por incúria na resolução de problemas prementes da repartição.


[71]