terça-feira, agosto 29, 2006

Orlando Mendes

A CHAMADA INSPIRAÇÃO

Gotas quase poeira de cacimba
caindo sobre as palmas das mãos
como em floresta desvirginada
e exposta nua de memórias
ao sol da primeira lavra.

Não queima nem lacera nem alivia.

Percute a descoberta palavra
para ser primitivo rastilho
do poema vivo candente.
E cresce na voz que temos
nas veias desde sempre.


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segunda-feira, agosto 21, 2006

João Paulo Borges Coelho

AS DUAS SOMBRAS DO RIO (excerto/2)

No dia seguinte, o lojista chegou como de costume. Vinha preocupado com um ligeiro atraso e por isso achou estranho que a porta estivesse fechada e as gelosias das janelas cerradas. Hesitou, bateu à porta e acabou por ir sentar-se junto dos outros criados, debaixo do alpendre, aguardando. Era uma situação inédita, aquela, e eles, habituados à rotina e à obediência, não sabiam o que fazer. Comentavam uns com os outros, falavam de coisas pequenas, esperavam. Mas a responsabilidade roía o lojista que não se sentia bem desconversando com o tempo, esperando que as coisas se resolvessem por si próprias. Por isso juntou coragem e deu a volta à casa, espreitando à procura de um sinal. Subiu os três degraus da varanda, do outro lado, batendo as palmas bem alto para pedir licença. Foi então que deparou com a patroa ao fundo da varanda, quieta, olhando o rio.
- Bom dia, patroa. Estamos já lá fora à espera de entrar. Há também alguns clientes.
Teve como resposta o silêncio. Mame Mère desinteressa-se dele, envolvida agora em assunto mais interior e fundamental. Passou a noite naquela mesmíssima posição, a mão esquerda pousada no colo e a direita no cabo do punhal, erecta, olhando o rio com os seus grandes olhos abertos. O xaile descaiu-lhe para a cintura já há muito tempo, o que de restou pouco importa: o cacimbo não molesta os mortos da mesma maneira que molesta os vivos. O sol matinal espalha-se pelo soalho da varanda e daqui a pouco chegará aos pés da congolesa e começará a trepar-lhe pelas pernas, iluminando-a.
O lojista esperou ainda um pouco, respeitoso. Mas intrigado com aquele alheamento, acabou por aproximar-se. Pigarreou primeiro, falou depois, tentando convencê-la a reagir, sem saber que Mama Mère estava já muito longe dali. Deu-se por fim conta de que o mundo desabava (quem depende daquela maneira, como o lojista e os criados, deposita sempre no protector o segredo da ordem das coisas). Deu vários passos na varanda sem se decidir por uma direcção, falou sozinho durante um bocado e acabou por fugir dali, gritando alto. De volta ao alpendre, levou ainda um tempo a fazer-se entender pelos restantes. Desataram então a falar muito alto uns com os outros, lamentando e inquirindo, descoordenados. Uns saíam do confuso círculo e iam espreitar à varanda. Voltavam depois gesticulando e bradando coisas incompreensíveis, como se visão do vulto induzisse a loucura.


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terça-feira, agosto 15, 2006

Jall Sinth Hussein

BASMA (77)

Não faças que vives
mergulha na capulana
com todas as cores


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segunda-feira, agosto 07, 2006

Fonseca Amaral

POEMA

Para o R.G.

Na carteira, junto ao peito,
«a mais maravilhosa fotografia da nossa adolescência»:
é o mar ao fundo, as casuarinas de religioso jeito
e a nossa juvenil independência

Estranhos hoje se sentam à mesa,
bebem o vinho e mancham a toalha:
não há novidade que apague e valha
o tecido sagrado da firmeza
O ruído insidioso não conseguiu varrer
os estilhaços de vidro na memória
e a picada fina da distância, já história,
é a cidade-flor-areia,
por esquecer

Do ímpeto e da delicadeza
trazes fotografia por medalha:
é óleo puro, serena certeza,
contido em firme, bem humana talha.


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terça-feira, agosto 01, 2006

Orlando Mendes

PONTE PÊNSIL

O menino branco nasceu numa ilha do Índico
Na rota dos navios cargueiros de especiarias.
A mãe negra o embalou silenciosa
Nas horas mornas vagarosas da solidão.
Cresceu brincando com os meninos negros
As saudades dos dias de São Vapor
(A mãe branca sonhava meninos negros regenerados
Navegando felizes em barquinhos à vela
Com o seu menino de cabelos soltos na proa…)
Hoje o menino branco negoceia especiarias
E os negros carregam especiarias
Nos dias que foram de São Vapor.
(Pesadelos que se infiltram no corpo da mãe negra
Antes de fecundado seu ventre são)
Bacharéis discutem na sonolenta academia dos bons costumes
O casamento sem registo nem confissão
Anseiam pela caça aos bichos que espreitam nos limites da queimada
E sabem dum mistério que arrepia e atrai e é preciso anular.
Os turistas filmam a inédita nudez
Para documentação dos arquivos familiares
E só o vento da floresta uiva por ti menino negro
Nesta longa noite velada sem poesia…


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