quarta-feira, julho 25, 2007

José Eduardo Agualusa

AS MULHERES DO MEU PAI (excerto/2)

Georgina garante que ele tem oitenta e dois anos. Custa a acreditar. Parece um jovem que cometeu muitos excessos. Claro que eu já o conhecia – através da obra e da reputação: Ricardo Rangel. Murmura-se este nome e logo alguém avança o rótulo: «Pai da Fotografia Moçambicana.» Implica certa responsabilidade, o raio do rótulo, pois Moçambique possui uma mão-cheia de excelentes fotógrafos. Eu gosto muito do Sérgio Santimano, um tipo meio preto, meio goês, com um espantoso olho lírico. Também gosto do Kok Nam, neste caso um moçambicano de origem chinesa, que acompanhou Rui Knopfli ao aeroporto no dia em que o poeta abandonou o país; isto só tem importância porque Knopfli nos deixou um registo poético do acontecimento: «É o fatídico mês de Março, estou / no piso superior a contemplar o vazio. / Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon / e olha-me, obliquamente, nos olhos: / Não voltas mais? Digo-lhe só que não. // Não voltarei, mas ficarei sempre, / algures em pequenos sinais ilegíveis, / a salvo de todas as futurologias indiscretas, / preservado apenas na exclusividade da memória / privada. Não quero lembrar-me de nada, // só me importa esquecer e esquecer / o impossível de esquecer. Nunca / se esquece, tudo se lembra ocultamente […]» Não sei o poema de cor, é claro, fui visitá-lo à Internet.


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domingo, julho 22, 2007

José Eduardo Agualusa

AS MULHERES DO MEU PAI (excerto/1)

- A Ilha, papá, como é o tempo em Moçambique, nesta altura?
A pergunta não o surpreende. Julgo que se sente aliviado por poder mudar de assunto. Suspira. «Em Janeiro», diz, «costuma fazer muito calor na Ilha. O mar é de um verde luminoso, a água quente, filha, chega aos trinta e cinco graus, uma sopa de esmeraldas.» Tira uma moeda do bolso, «Lembras-te?», eu lembro-me, claro. Seguro na moeda. Vinte réis. Está muito gasta, mas ainda assim consigo ler a data sem dificuldade: «1824». O meu pai encontrou a moeda numa praia da Ilha, no primeiro dia em que lá chegou, o mesmo em que conheceu a minha mãe.


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domingo, julho 15, 2007

Rui Knopfli

LETRA PARA UM SOLO DE CHARLIE PARKER

Como estranha ave de presa
que ferida de morte flectisse
a hipérbole do voo na agonia
prolongada, é um canto angular,
terso, mas de arestas poluídas.
Polígono torturado, perturba-o
a iminência adiada de um grito
de socorro. Em sua chama viva
perpassam secretas vozes de rebeldia,
bárbaros sons de tormenta. No clamoroso
incêndio da ira e da raiva
(é preciso saber escutar),
a urgência implorativa
de um pouco de ternura.


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