terça-feira, fevereiro 28, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / VERDADEIROS PROPÓSITOS (excerto/2)

Nesse tempo ainda não existia o pontão do cais e as mulheres embarcavam com mil dificuldades, equilibrando trouxas à cabeça e arrastando os filhos nas pontas das capulanas. Primeiro, era a distância interminável com água pelos joelhos até chegarem às canoas. Depois, estas pejadas de gente e carga, ameaçando adornar na sua viagem lenta até encostarem ao casco ferrugento do barco da carreira. Finalmente, o embarque, o povo trepando como podia, as galinhas cacarejando, os cabritos balindo assustados com o transbordo, as crianças chorando, a multidão cansada e irritada como se estivesse terminando e não começando a viagem. E o Nieleti parecia então uma nova arca de Noé, com bichos e plantas, humanos e coisas, diferente da original apenas na medida em que em vez de estar salvando um par de cada, procurava salvar um povo inteiro.


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terça-feira, fevereiro 21, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / VERDADEIROS PROPÓSITOS (excerto/1)

(…) Tomé Nhaca sabia de outras searas de peixe maduro, pronto a colher, tão recônditas que haviam sobrevivido à febre da mudança dos nomes; que, de facto, nem sequer haviam tido nomes. Não lhos deu ele também para que ficassem por descobrir. Bastava-lhe localizá-las, o que fazia recorrendo a enigmáticos expedientes: estando-se a certa distância, no mar, sob um certo sol, vendo-se dali em linha recta as duas tetas altas da Inhaca, que continuam à mostra mesmo depois da ilha quase ter desaparecido na distância, deveria o seu barco estar no sítio certo, fazendo sombra a um desconhecido cardume, lá em baixo. E assim era porque, tirado o secreto azimute, o barco ficava a pairar numa ondulação suave sobre tocas de onde espreitavam circunspectas garoupas ou irascíveis moreias, bandos de papagaios coloridos e vaidosos, longas filas de peixes-serra, tubarões vogando em círculos na permanente procura que é a sua. Atiravam-se então as redes e elas vinham cheias dessa massa fervilhante, tão cheias que era um alegre martírio subi-las, um martírio a que homens se submetiam cantando.


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sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Rui Knopfli

PRINCÍPIO DO DIA

Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom dia
e sei que intimamente ele me responde.

Saio para a rua
e vou dizendo bom dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

No escritório digo bom dia.
Dizem-me bom dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

(Amanhã volto a experimentar.)


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terça-feira, fevereiro 07, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / OS SAPATOS NOVOS DE JOSEFATE NGWETANA (excerto/3)

Enquanto Herculano pensa e caminha, o capim torna-se ralo e os novelos de micaias, as amálgamas de arbustos retorcidos e sem nome cedem lugar a pequenos exércitos de árvores alinhadas, trabalhadas pelos homens, ao seu gosto afeiçoadas. Abençoadas. Árvores com frutos de cascas finas como peles de mulher, caroços raros, polpa abundante e suculenta. Cremosos como a banana, sumarentos e dourados como os citrinos ou vivendo da fama do cheiro que exalam, como a massala. Acariciou uma laranja sem sequer a arrancar da pequena árvore de onde pendia, apenas para lhe sentir o arredondado da forma, a ténue rugosidade da casca, e para cheirar o leve aroma acidulado. Um pouco adiante, tomou nas mãos uma manga enorme como um coração, vermelha como ele. Arrancou-lhe a casca com os dentes como quem tira pétalas a uma flor. Cheirou-a de várias maneiras, pois são também diversos os aromas que a manga exala – florais, resinosos, aromas roubados até de outras frutas, quentes como as especiarias ou gelados como a lua se lhe pudéssemos tocar – antes de fincar os dentes nela e deixar que o sumo lhe escorresse até ao queixo. Largou-a porque viu ao lado uma goiabeira carregada de frutos maduros. Deixou-se enevoar pela magia da goiaba, pelo seu enigmático perfume, simultaneamente repugnante e irresistível. Se verde, de uma acidez estimulante; se madura, como se comêssemos pequenos novelos granulosos e suculentos. Deteve-se em frente a uma pequena papaieira vergada pelo peso das suas papaias. Irresistíveis para ele como para os pássaros que saltitavam em volta, debicando-as. Pegou no punhal e abriu uma delas a todo o comprimento, ficando por um momento a olhar a fenda oblonga e a carne cor de fogo espreitando de dentro dela, o líquido incolor que a humedecia como um soro vital. Molhou nela a ponta dos dedos, acariciando as sementes negras e contrastantes como grãos de pimenta. Enterrou-lhe os dentes com avidez e sentiu a carne ceder, no seu cerne um sabor a mel. Ébrio, deixou-se finalmente chegar à árvore das árvores, a árvore do ocanho, fruto da terra. Olhou-os ainda verdes, pendurados, ou amadurecendo no chão em volta. Provou a sua polpa boa, e quando sentiu o sabor agridoce na base da língua achou a prova palpável e definitiva de que estava chegando a casa.


[199]