sábado, novembro 29, 2003

Sebastião Alba

ÍCARO

Da Mafalala estorva-nos
a memória dos gregos
É um anjo negro segredado
e assim goza
de asas sussurrantes
Desce por entre
intervalos do vento
e findo o voo refunde
o modelo de cera
Como qualquer pássaro faz ninho
ele no vestido das mulheres
Sem céu fixo
exala a plumagem
da comum nudez interrompida.


[42]

quarta-feira, novembro 26, 2003

Eugénio Lisboa

ORIGEM

Ao Sebastião Alba

Regresso ao passado espesso
Tecido incestuosos vário sujo
Magna de ódio embebido em gesso
Rápidos pavores de que fujo
Ó húmida tentação horizontal
Cave podre e quente latejante
Onde menina sedução mineral
Viva palpo aliso quase ofegante
A vida a violência o sangue o sal
Incrível solo de augusta criação
O leite o mar a mão o sexo
O amor o riso e a traição
Os livros e a pureza ó quase nexo
Ó embruxado, aquecido caldo
Turva sopa inquieta mátria
Em ti me aqueço grito escaldo
Noiva do negro cru espasmo-pátria!
Tempo turvo incerto fino rubro
Metálico fogo ruivo trampolim
Horizontal finura que recubro
Ó mãe irmã uva de cetim!
Tempo antigo de impura surdina
tudo era ali calor de incerteza
Risco cerco sugestão de mina
Súbito esperma surto da represa.
O estupro a morte o oleoso sangue
O mar que tudo lava a memória
O ódio a agonia o corpo exangue
Do negro rebentado – única vitória!
Infância plasma leite de origem
Noite descoberta febre violenta
Profanação antiga ó mãe vertigem
Noite confusa vigília peçonhenta.
Sabor antigo e brusco a caju
Pecado de limão ao fim do dia.
Histórias de mamba e de surucucu
Alçado gozo de fruto e agonia.


[41]

segunda-feira, novembro 24, 2003

Bibliografia essencial: Sebastião Alba, Albas, Quasi

quarta-feira, novembro 19, 2003

José Craveirinha

ÁFRICA

Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rols-Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina a vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das suas balas e dos seus gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
em rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas de chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens inventaram
a confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre os ninhos mornos de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do pasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo no Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meus povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o Eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.


[40]
José Craveirinha

GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!


[39]
José Craveirinha

XIGUBO

(Para Claude Coufon)

Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!

Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.

Dum-dum!
Tantã!
E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.

Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.

E as vozes rasgam o silêncio da terra
enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio.


[38]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Xigubo, Edições 70

sexta-feira, novembro 14, 2003

Rui Knopfli

KAAP DIE GOEIE HOOP

Verdes vinhas de entre dois oceanos,
na lança antártica da rosa-dos-ventos,
ao limite extremo do Cabo Fim.
Luxuriento, o leito azul do Mostrengo

adormecido, ásperas, duras falésias
e abismos, fractura de altos sonhos
imperiais. Na lívida sepultura
da areia, perdido o Setestrelo,

o cego navegante deitou sortes
à Ventura relutante. Na escuma
do Tempo, oxidado e estrangeiro,

o timbre da voz remanescente. Erecta
lápide roída de sal e de remorso,
na bruma. Só o Padrão é português.


[37]
Rui Knopfli

BALDIO

O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras aos galagalas
e salta sobre as velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra de meus olhos.


[36]

quinta-feira, novembro 13, 2003

Rui Knopfli

NO CREMATÓRIO BANEANE

Brahman e Atman, eis dois nomes apontando
à mesma verdade, porque outro e um
a mesma coisa são. A Verdade Universal
no primeiro, no segundo a que cada um
de nós transporta dentro de si. Às duas
designa-as Om, o Sim Total, a Verdade
Derradeira. Saibam lê-las no crepitar

da lenha, aqui neste instante
e neste último envergonhado reduto
que nos coube, precária ponta escorada
sobre o acerado resvaladiço da rocha.
Hirto no topo da pira, ungido de essências
e grinaldas, o despojo apenas se descobre
à férrea impassibilidade de S. Lourenço.

Nachiketas, o jovem, repete a pergunta
milenar: «Na morte de um homem
dizem uns, ele é e outros, ele não é.
Onde está a verdade?» «Atman, o Ser,
nunca nasce e morre nunca». Por réplica
da branca ara para o alto sobe
alta coluna de grosso fumo vertical.

Tat tvam asi. Satyam jayate.


[35]

domingo, novembro 09, 2003

José Craveirinha

O BULE E O BLUE

Seu
bule na mão
encho a chávena de chá.

Provo um gole.
Ergo-me quase ao tecto
um anjo doirado em ritmo blue
a teclar piano num arco-íris do Céu.

Oh! Bessie Smith, oh! Bessie Smith!

Era aquele o bule
do chá que Maria tomava.

Oh! Ponho-me blue na voz
de Bessie Smith, oh! ponho-me blue
na voz de Bessie Smith!

Fulgentes asas de andorinhas batem palmas
oh! Batem palmas os blues das andorinhas...

Oh! Bessie Smith, oh! Bessie Smith!

Sou um anjo doirado bamboleando blue
blue
blue
Oh! Bessie Smith, oh! Bessie Smith!

Era aquele o bule
do chá que a Maria tomava
como quem escuta um blue.

Mais um gole ó Zé mais um gole de chá
mais um gole para seres um anjo blue bamboleando
nas teclas do piano de arco-íris de Céu
lá onde Maria vive o Éden merecido.

Oh! Bessie Smith!
Oh! Bessie Smith!

O mundo está blue
blue
blue!


[34]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Maria, Caminho
Bibliografia essencial: Fátima Monteiro, O País dos Outros - A Poesia de Rui Knopfli, INCM

quinta-feira, novembro 06, 2003

Sebastião Alba

MAIS DO QUE DO OUTRO

Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam
os espaços aéreos de países castos
e se dissipam além dos limites naturais
um laivo incendiando as espirais do rasto
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mas de uma província de incerta geologia
com uma história sem crónicas ou reis absolutos
a única a que a constituição se refere numa clave de sol
onde os cidadãos de todos os burgos
pulam à rua das mãos estendidas de deus
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.


[33]

quarta-feira, novembro 05, 2003

Grabato Dias

AS QVYBYRYCAS
(canto nove - fragmento)

DCCCXCV

Anda o homem por fora do milhor
que dentro tem, e muito se consume
sem lograr conhecer o peixe amor
que o navega solene. Ó cardume
nos fundos do inaudito refrescor
gerador do sagrado e vivo lume...
O homem se ignora, e nós, como homes
não sabemos o quê das nossas fomes.

DCCCXCVI

Se cégos buscássemos na treva
a luz que competia... se a candeia
interior ao tutano e a toda a seiva
acendesse por mágica ideia...
se, já que cégos, de bordão e greva
juntos abandonássemos a aldeia
deste quieto nada... por juntados
veríamos menores nossos cuidados.

DCCCXCVII
Assim que outro sentido tem a vida
senão ser esperar morte todo o tempo?
Sempre a vida se adia, por comprida
e por pensarmos que amanhã é tempo
de preparar farnel para a partida.
(...)


[32]
Bibliografia essencial: João Pedro Grabato Dias, As Quibíricas, Edições Afrontamento