sábado, abril 30, 2005

José Craveirinha

MAMPSINCHA

A mampsincha
é um fruto africano
rasteiro ali onde nasce
e cresce de cor verde
enquanto púrpuro não se torna
e já sazonado o levanta
nas puras mãos de ébano
o negrinho na gula do seu caroço.


[149]

terça-feira, abril 26, 2005

Jall Sinth Hussein

SÃO AS COISAS E TÊM ALMA PRÓPRIA

São as coisas e têm alma própria
e as nomeio pedra água pau casa
e me equilibro e perco em seu centro
mas as trato como pessoas iguais a mim.
Nunca estou só como as crianças
que frente a ninguém estão no meio dos seus amigos.
São as coisas e povoam tudo como pessoas
e como pessoas me cercam e seu coração lhes bate e me chama.
Suas almas atravesso e as trato por tu


[148]

sexta-feira, abril 22, 2005

Pedro Muiambo

A ENFERMEIRA DA BATA NEGRA (excerto/2)

Havia quem a chamasse uma mulher sem idade. E quem a considerasse uma convergência de graças infinitas. Ou uma alavanca de desvarios.
Os homens escondiam-se com frequência das suas esposas, faziam-se aos lugares mais recônditos das suas habitações, abriam as braguilhas, introduziam as mãos e, voilá, entregavam-se à arte humana mais remota – a de ordenhar o próprio touro – deixando escapar mudas interjeições.
Mas não eram apenas os homens que suspiravam por ela: também as mulheres.
Viam-na, aquela borboleta, esvoaçando entre as bancas do mercado, e todas elas estacavam o passo, e antes mesmo que a auto-estima lhes impedisse, debruçavam-se aos seus pés, minimizavam-se, por assim dizer, em submissa rendição.
E quando, de noite, à cama se faziam, e eventualmente lá não encontravam os esposos, voltavam a pensar nela, obsessivamente, na aura que a iluminava e naqueles seios agressivos, o andar arrebatador, enfim…
“Pensam no infinito, estas mulheres”, adivinhava sô Ribeiro, o bom do tuga, que passava a vida a falar dos livros que dizia ter lido, ou do bom azeite de oliveira que dizia ter crescido a saborear lá em Trás-os-Montes, onde nascera. “E macacos me mordam se eu também não desejo o infinito”, rematava, cuidando no entanto que a sua consorte não o ouvisse.
E o que dizer o Ubaldo Delgado, o cooperante cubano que leccionava matemática no centro de formação de professores, em Chibututuíne, a sete quilómetros da vila. Um tipo que se derramava em versos, tão cedo a avistava ou dela ouvia falar, sem se importar com os possíveis escândalos sociais que a sua atitude poderia provocar, nem em traduzir para os seus confrades moçambicanos os seus frémitos românticos.
(…)

O nome dela era Maceda Magaço.
Era mãe de Isayana.

Enfim, ninguém ficava alheio à aura esplendorosa que dimanava daquela mulher. No seu confronto, ou se era do leste ou se era do ocidente. Não-alinhado era uma possibilidade inexistente.
O próprio governador da província chegara a afirmar em pleno comício, exibindo-a: “Ela é a máxima demonstração de que a revolução socialista pode alcançar o que se supões estar apenas na alçada dos deuses: o milagre da beleza. Sendo assim, precisamos de deus para quê?”
Fortes aplausos.


[147]

segunda-feira, abril 18, 2005

Victor Matos e Sá

A RUI DE NORONHA

Poder, Amigo
chamar-me irmão na tua dor
já que não o posso ser
na mesma cor;

Ja que um destino diferente
e os anos,
Puseram longas, infinitas margens
entre as nossas vidas
afastadas...

Tu, lá no último Sonho
onde a verdade existe em cada um
como um sangue puro,
como uma lua natural.
E eu
ainda nesta luta
de viver
sofrendo
o mesmo mal.

Este malfeito destino
desde meus sonhos primeiros
de menino;
este mal de chorar sempre
a dor comum dos desgraçados
e ter lágrimas ainda
para os nossos sonhos
destroçados...

Esta mal
só mal para o mundo
a nossa única essência de viver
e contar
diversamente
a mesma eterna agonia...
Este mal que vem a ser
a poesia...

Deixa-me, pois, Amigo
(Diante qualquer noite deserta
em que o silêncio
e a sonolência de tudo
seja para nós
a única porta inteiramente aberta
e o nosso altar)
ficar contigo um só instante,
- apenas o bastante
para te Amar!

E poder, Amigo,
chamar-me irmão da tua dor
já que não o posso ser
na mesma cor...


[146]

sábado, abril 16, 2005

Pedro Muiambo

A ENFERMEIRA DA BATA NEGRA (excerto/1)

Brincava no jardim frontal da vivenda que juntamente com outras cinco dezenas, de igual pequenez e ordinarice, inventavam aquela vila sobranceira ao Incomáti – quando as surpreendeu.
Precipitavam-se, num jogo de matyangwe-tyangwe, para um buraquito cavado no centro do relvado.
As formigas.
Agachou-se a acolheu-as, qual monge solene, com a sombra do seu corpinho. Enlevado. Boquinha semiaberta. Olhos reflectindo estrelas inexistentes no amplo azul celeste. Eram uns olhos grandes, justamente a medida da interrogação das crianças, na sua ingénua, entusiástica e mórbida filosofia.
E tão voraz era a sua curiosidade, que quase derrubava o formigueiro com a potestade da sua contemplação.
Foi no ano em que a fome chegou pelas asas dos gafanhotos.
Nesse inolvidável ano de 1980.
Isayana Magaço prosseguia a sua infanta desvenda do cosmos enquanto, lá das nuvens, aos olhos dos passarinhos, parecia entregue aos fúteis mistérios dos homens.
Na verdade, naquele ângulo, era-lhes difícil reparar que o garoto batia também as suas asas, à sombra daquele eucalipto imponente.


[145]
Bibliografia essencial: Pedro Muiambo, A Enfermeira da Bata Negra, Campo das Letras

domingo, abril 10, 2005

Jall Sinth Hussein

MOÇAMBIQUE 75 – PRAÇA MOUZINHO DE ALBUQUERQUE

Era um dia solitário e pequeno
dia confidencial e toscamente feito
dia de homenagem nas traseiras

o instante parecia feito para recuar.

Quando homens sem nome
apearam Mouzinho
vi a natureza confusa das coisas
o mundo de pressa e emenda que me levava ignorado.

Eu não – que não estava ali –
mas com uns olhos limpos que podiam ser os meus.


[144]

sexta-feira, abril 08, 2005

GALINHA À CAFREAL

1 frango
1 colher de sopa de azeite
Sumo de meio limão
4 piri-piris
1 colher de chá de sal
1 colher de chá de pimenta
4 dentes de alho picados

Abrem-se os frangos pelas costas e espalmam-se. Misture o azeite, sumo de limão, piri-piri, sal, pimenta e alho. Tempere a galinha com esta mistura. Grelhe virando de vez em quando. Unte de vez em quando com o molho restante à medida que se vai grelhando. Deve ficar bem picante.

segunda-feira, abril 04, 2005

Rui Knopfli

CÃO DO NILO

Aqui deixo os mortos que me pertencem e os vivos
com que me reparto. Cão do Nilo, sobreviverei bebendo
na corrida, entre o ranger metálico das culatras
e o bafo cálido da pólvora. Sigo ao sabor da corrente,
um destroço à tona de água. Perto do fim, o cerco.

Adeus amigos, ternura diluída na neblina, começo
a esquecer-vos. Perdoam-me os mortos, enigmáticos,
sorrindo e escurece, no corredor, envergonhada, a luz.
De pura cobardia reincide o coração. Na margem
do rio indistintos vultos acenam discretamente.

Transidas, não esvoaçam as aves de outrora,
imóvel e erecto o canavial petrificado. Outras
vozes sepultam já o eco da minha. Foragido
da memória irei por esse mundo além. Amigos,
fantasmas, nomes, lugares sabidos de cor, quero

chamar-vos esquecimento. Não estarei com os que verão
o declive verdejante da montanha, nem alcançarei
a Terra Prometida. Errarei o resto dos meus dias através
de paragens inóspitas, levando comigo a vaga
lembrança de um aceso país povoado de gentes,

coisas e lugares perdidos e sem rosto. O cabo
enfreia a costa que do austro vinha correndo.
Em temporais, vento e névoa, para sempre
mergulhará o continente. Olho adiante.
Sobre meus ombros cerra-se, definitiva, a noite.

Alem, álgida e glabra, abre-se a luz para onde
me empurram tempo e fera ventura. No proscénio
em que se desenrola a tragédia de Lear, a saga
de Tamburlaine, ou a fúria sanguinária de Macbeth,
serei comparsa anónimo revendo, nessas cenas,

lances bem outros e diferentes. Exausto de batalhas
e combates que não travei, de conturbadas situações
em que mais não fui que espectador passivo, dormirei
por fim, transposto o limiar neutro e cinzento onde
não há lápides, lembranças da pátria, ou de coisa nenhuma.

Meus irmãos, meus inimigos desaguados nos esgotos
da Europa, irão urdindo, sob a indiferente,
brônzea miradas dos algozes, espectros e sombras,
por praças estrangeiras talhadas em granito,
silêncio e desolação. Alcácer Quibir, melhor fora

ter adormecido no deserto, melhor fora repousar
no leito das areias, convertido o sonho em ossada,
brancura na distância. Pai, entre os torpes,
fumegantes destroços do Império, teu filho esconde
o rosto e esgueira-se furtivo pelas malhas da diáspora.


[143]