segunda-feira, junho 30, 2003

Rui Knopfli

ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo o mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade.
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.


[9]

quinta-feira, junho 26, 2003

Sebastião Alba

CIDADE BAIXA

Nas manhãs em que o mar se recusa
mesmo do último andar do edifício
e o aroma do café
sai de chávenas conjugais nas outras flats
confidencio-me:
Passa à escolha doutro dia
este é como uma sombra
de pé, na cidade
e a cidade é o mundo.
Peço então ajuda
aos amigos mais desencontrados:
Socorro, Eugénio! Socorro, Fernando!
Carlos (Drummond), socorro!
E o meu grito é um cicio fixo
no pesadelo em que nada transcorre.
Mas os seus rostos
rodeiam-me a cabeceira
e eu aprendo neles devagarinho
o sorriso que deixa
a vida irrecuperável.


[8]

Bibliografia essencial: Sebastião Alba, O Ritmo do Presságio, Edições 70

quarta-feira, junho 18, 2003

Rui de Noronha

À TARDE

Não sei o que há de indefinível, vago,
Na morna luz da tarde,
Que nos envolve de um etéreo afago
E como que nos arde.

De nós então parece que se evola
Um pouco de ansiedade
Que tímido cantando acende e rola
Em busca da verdade...


[7]

segunda-feira, junho 09, 2003

José Craveirinha

POEMA de JOSÉ CRAVEIRINHA NUM DIA EM QUE ESTAVA TODO DE NEGRO

Para Hitler - um Craveirinha judeu dedica


Olhem José Craveirinha que vai
vestido de negro passando
com longas pestanas descidas sobre os trágicos mundos
dos nostálgicos olhos profundos.

Olhem José Craveirinha que leva o autêntico cerne
não de platonismo de lagoa de reflexos de platina
não de um canto de cigarra farta no ramo de uma acácia urbana
não de uns flectidos braços de mulher na lânguida madrugada
não de uma semente estéril num chão de pedras
não de um silvo de fábrica na manhã do bairro
não de nada disso
nas do signo romântico das aves que cantam
na fatal paisagem de um continente
e nos poemas subversivos que o poeta não inventou.

Olhem José Craveirinha que vai
vestido de negro passando
no luto calmo de si mesmo.

Leva amor no brilho mágico dos olhos negros
amor de seus filhos e seus irmãos
de sua esposa e da mulher amada
e de tanto quererem levá-lo
leva África nos lábios duros.
Oh, leva África nos lábios duros
de tanto quererem levá-lo.

Olhem José Craveirinha que vai
vestido da sina geométrica das quatro paredes
(Quantas noites podes ficar de pé, José Craveirinha?)
lisas e direitas como um féretro de cimento
onde o querem desumanizar.

Negros são os seus olhos
(quantas noites podem ficar encandeados os teus olhos, José Craveirinha?)
dois carvões de presságios
da dor que vier fecunda a acontecer.

Ninguém chore ainda
ninguém lhe mande coroas de rosas
ninguém lhe dedique elegias
lápidas gravadas
e um dia músicas de "parabellum".
E ninguém tenha saudades enquanto não morrer
da morte esperada que lhes derem.
(Oh, quantas horas podes ficar com essas alianças nos metacarpos apertados, José Craveirinha?)

Leva nos olhos escuros a imagem secreta
das mulheres que mais amou
e na polpa dos dedos José Craveirinha leva os bicos
túmidos dos seios que beijou.
Magro e subversivo
Oh, José Craveirinha que vai
na nuvem de fogo dos pensamentos poéticos
(ah, o perigo dos pensamentos poéticos de José Craveirinha)
a trinta e cinco metros vigiado
por um atento cidadão bem remunerado.

Olhem José João Craveirinha num jipe
olhem José João Craveirinha acompanhado
olhem José João Craveirinha incomunicável
olhem José João Craveirinha preso.
E a notícia correu, célere na cidade construída na margem do mar
correu sobre os prédios e as copas dos cajueiros
correu de canto a canto
correu de boca em boca
correu nas iras do vento sobre a fronde dos coqueiros
correu de lés a lés como um rio sem parar

Ah, quantas morenas teve José Craveirinha
ah, quantas loiras amou José Craveirinha

E nos versos que escreveu
quantas mulheres
árvores e pássaros austrais
homens e crianças
ventos e rios e céus cheios de sinais
José Craveirinha cantou?

Olhem José Craveirinha que vai
no fatalismo atávico dos tambores rongas
passando vestido de negro
no luto de si mesmo.
Envolvido no feitiço imutável do seu destino
Olhem José Craveirinha
Olhem José Craveirinha que vai
preencher a geometria das paredes
carinhosas na bárbara nudez de pedra.

Olhem José Craveirinha
Olhem José Craveirinha passando
Olhem José Craveirinha que vai.


[6]

Poema publicado na Revista Português em Cordel nº 5, Junho de 1995, e "repescado" do site MADERAZINCO.

segunda-feira, junho 02, 2003

Fonseca Amaral.

L'APRÉS-MIDI D'UN GALA-GALA

Aí vai, em espiral,
pela mafurreira acima.
De capuz azul celeste,
estreitos lombos de cinza,
seu ventre quase de nácar
arrima-se às moças. Moscas,
quero eu dizer, na verdade.

Não se importa mesmo nada
com este odor machambeiro
a massala, milho velho,
capim seco e gasolina.
Só com a árvore conta
- mais um pedaço de terra,
para as pequenas surtidas.

Mesmo pequenas surtidas?
Também tem disso, também.
Coisas da vida terrena
de um bicho tão colorido,
solteiríssimo, tristonho...

Gala-gala, gala-gala,
diz que sim, que sim, que sim,
gala-gala!

"Conversa de jaca mole",
coaxam muchachos duros.
"Temos um réptil rampante,
heroicamente falemos.
Em ramada, em campo verde,
é dragão, raio, uma espada.
Sua justa guerra às moscas,
monstros de sete mil olhos,
merece um outro poema,
muito, muito sublimado!"

Gala-gala, gala-gala,
diz que não, que não, que não,
gala-gala!
Mesmo do seio do mato,
vem Mufana, a assobiar.
Topa logo o gala-gala.
Aventa rija pedrada,
e lá se vão para as malvas
o lagarto e o poema.


[5]

Bibliografia essencial: No Reino de Caliban - Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa, Volume III, Organização de Manuel Ferreira, Plátano (2ª Edição, 1997)