quinta-feira, junho 30, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O PANO ENCARNADO (excerto/2)

Se ainda houver dúvidas, puxe pela memória, cliente,
diz ainda o senhor Rashid, achando que temos aspecto de ter memória,
e lembre-se de um certo fato da melhor fazenda riscada que o senhor doutor Arantes e Oliveira gostava tanto de usar no tempo em que era Governador-Geral, e que lhe assentava a matar; levou-o daqui, éramos já Alfaiataria 2000, embora ainda sem Jamal, nessa altura soando a negócio mais que de futuro, espacial, marciano. Mais avançado que ele, e mesmo assim só um ano, apenas aquele filme americano que passou à época no Alemida Garret, em Nampula, e a tanta gente admirou. Pagou o senhor Governador pelo fato uma pechincha. Há até uma fotografia onde tudo o que ele veste é meu excepto as extremidades, ou seja, o chapéu que usava alternadamente na cabeça ou na mão e consta que foi Salazar ele próprio que lho enviou, e os sapatos que não sei onde os comprou pois não se pode saber tudo. Não sou e veríamos nessa fotografia um Governador-Geral todo nu, de sapatos nos pés e chapéu na mão.


[162]

sábado, junho 25, 2005

Marcelino dos Santos

SONHO DE MÃE NEGRA

Mãe negra
Embala o seu filho
E na sua cabeça negra
Coberta de cabelos negros
Ela guarda sonhos maravilhosos

Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou

Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho iria á escola
Á escola onde estudam os homens

Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Os seus irmãos construindo vilas e cidades
Cimentando-as com o seu sangue

Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho correria na estrada
Na estrada onde passam os homens

Mãe negra
Embala o seu filho
E escutando
A voz que vem de longe
Trazida pelos ventos
Ela sonha mundos maravilhosos
Mundos maravilhosos
Onde o seu filho poderá viver.


[161]

terça-feira, junho 21, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O PANO ENCARNADO (excerto/1)

Para entrar na Ilha de Moçambique é necessário atravessar a ponte. Ponte estreita, metálica, quase infinita, que nos leva da terra firme para o outro lado. Como sempre, há a versão daqueles que olham a Ilha com estranheza e a dos outros, que a consideram o dentro do mundo, e ao outro lado o mato. De qualquer maneira, sendo ou não como cada um diz, é na ponte que reside todo o mistério pois que, unindo, ela traz à lembrança a separação. Sem ponte seria um mundo à parte; com ela, transformou-se a Ilha numa ilha, num espaço fechado onde só pela ponte se entra ou sai. Como em todas as ilhas, também aqui os habitantes são inquietos, olhando o continente com desdém, outras vezes como se o desejasse. Nunca se decidindo, todavia, a alcançá-lo.


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Bibliografia essencial: João Paulo Borges Coelho, Índicos Indícios I - Setentrião, Caminho

domingo, junho 19, 2005

Julius Kazembe

O GIRASSOL

O brilho inteiro das galáxias
a latejar no girassol
enfurecido
desdobrando-se em arco-íris
para a morte sobrevivida
entre os gomos do canto.
Um barco é uma faca que rasga
Essas dunas cheias de sortilégios
E de luz as salpica.
Reapetece.
A asa fresca da madrugada
Encrespará levemente
Dos corpos nus a seda
Para outra vez.


[159]

segunda-feira, junho 13, 2005

Jall Sinth Hussein

BASMA (51)

Tu ficaste só
quando tua mãe te deixou
em redor do mundo


[158]

quarta-feira, junho 08, 2005

Domi Chirongo

CHIMURENGA

Nesta saudação
quilombola
há uma bola
p’ra ser chutada
estudada
e aprofundada,
é assim mesmo
a caminho
do nosso
ninho
entoamos
este hino
de luta
entre luto
e orgulho
glória
e esperança
prosseguimos

Chimurenga,mano
nosso grito
nossa luta
p’la dignidade
e identidade
africanas
sempre
em frente
phambeni
aqui, ali
e acolá
bola p’ra frente
como Pelé
pú, pú, pú, pú
eis a escolha
de resistência, mano
não te escondas
a vitória
é sempre certa
quando justa


[157]

quarta-feira, junho 01, 2005

Isabella Oliveira

MEMÓRIA DA ILHA

Ilha de Moçambique, 1972

Giorgio e Silvana passeiam abraçados pelas ruas estreitas da ilha, gozando a brisa que a chuva, ao fim da tarde, deixou. De súbito, param para observar a figura que caminha nas arcadas semi-iluminadas da Fazenda, um dos poucos edifícios onde flutua a bandeira colonial. Trata-se de uma mulher indiana, com o rosto enrugado e excessivamente pintado. O estado decadente da seda que traja e os caracóis grisalhos que lhe irrompem do esburacado lenço garrido provocam aos dois sérias dúvidas sobre se não estarão na presença de um reencarnado manequim dos loucos anos vinte. Na boca, uma boquilha de prata, cuja filigrana condiz com a dos anéis e pulseiras que lhe adornam dedos e pulsos. Só o cheiro do tabaco, barato, não faz sentido. O cigarro apaga-se e Giorgio não perde a oportunidade para se aproximar. Quando lhe estende o isqueiro, a mulher arregala os olhos e grita:
– Afasta-te de mim, hippy! Queres pegar-me fogo?, pois morrerei como Joana d’Arc! Mas morro de pé, ao contrário dos que me traíram!

Os italianos riem e continuam o passeio. Aquela personagem não destoa no imaginário da ilha. Acabaram de assistir a uma cerimónia tradicional, onde os ritos muçulmano e macua se cruzaram e ao longo da qual os olhos de Silvana se fecharam algumas vezes para não verem um curandeiro perfurar o próprio rosto com grossas agulhas de ferro, sem que uma só gota de sangue tivesse jorrado ou qualquer sinal de dor se descortinasse. Ao seu lado, Giorgio fitara intrigado o homem de cofió vermelho, vestido de branco dos pés ao pescoço, cujos gestos eram acompanhados em silêncio por uma multidão de crentes. Ao menos, àquela gente, não tinham os portugueses conseguido domar os deuses, concluiu.

Estão na ilha clandestinos, disfarçados de um vulgar casal de turistas. Dois meses antes, o médico recebera em Dar-es-Salam um livro de fotografias, da autoria de um jornalista de Lourenço Marques, que o fizera pedir ao movimento uns dias de férias. Também ele quis sentir ao vivo a poesia de “A Ilha do Próspero”.


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