quarta-feira, abril 25, 2007

Luís Bernardo Honwana

NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO (excerto)

O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo, aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.
Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.
O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.
Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo do rabo uns dos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade.


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quinta-feira, abril 19, 2007

Nelson Saúte

MUNHUANA BLUES

Lá nos arrabaldes da minha infância
a casa da Munhuana me não resiste apenas
também guardo ciosamente na memória
as histórias da minha avó Angelina
e mantenho o medo
da ameaçadora visita do Guiguisseca
anunciada na varanda da loja do Muchina
enquanto os miúdos do meu bairro
todos eles craques
desmentiam o talento do Eusébio.
Ali no Bairro Indígena eu ainda sou
aquele rapaz de calção e sapatilhas
- compradas numa daquelas lojas
dos monhés do Xipamanine –
correndo a toda a largura a rua do Zambeze
no dia em que prometeram
uma visita ao Jardim Zoológico.
O baldio que ficava à frente da minha casa
foi vítima de urbanização clandestina
e no lugar onde as meninas se despontavam
para os meus sonhos febris de vate desassumido
e vendiam badjias e matoritoris
reincide-se na ofensa à memória.
Naquele tempo minha avó reverberava o mito
esvoaçando as saias das moças nos bailes
e as calças bocas de sino dos rapazes do Chamanculo.
Foi ali que começou esta minha mania de amar o Brasil
nas vozes do Carnaval da avenida de Angola.
O samba da Mafalala também tinha batuques
e a folia Índica desta minha Bahia
marrabentando os acordes da tua viola.
Também cantei e bailei como esta noite
neste meu desavisado regresso ao Xipamanine
não só por culpa dos avatares do velho gramofone
e os discos de 45 rotações mas por imposição
da vocação da minha avó Angelina
que jamais enfrentou um palco.
Fica para contar aos meus filhos os talentos
dos que nos precederam. Minha avó agora não canta.
Na sua casa ex-madeira e zinco de precária alvenaria
ela deita-se no chão
de cimento queimado e conversa com os ancestrais
quase todos eles à sua espera em Ressano Garcia.
Tudo isto agora e sempre nesta noite de sábado
eu filho legítimo das bangas na geração dos anos 80
a dançar até amanhecer quando no dia seguinte
tinha folga na minha indesmentida profissão
de formador de bicha nas lojas do Povo
ou no talho da Eduardo Mondlane que abria as portas
já com a carne do Botswana esgotada.
Mesmo assim as nossas festas
com cervejas à pressão e coca-colas
compradas a muito custo
pelos nossos meticalizados bolsos
incompetentes para adquirirem as montras vazias
das cooperativas de consumo parecem ficção
aos olhos desta juventude.
Não muito longe do largo João Albasine
nestes anos todos de ausência da Munhuana
exilado lá para os lados da zona alta da cidade
quem regressa é aquele menino que eu fui
muito antes de conhecer o Alto-Maé dos chinas
quando a Polana era só e apenas
um vago e improvável aceno do futuro
e a Sommerchield adjectivava a quimera.
Agora meu velho João Domingos retorno
à minha infância entregue ao prodígio desta noite
de extenuado sábado nesta pista de dança
e no espanto deste incauto duelo com os velhos mitos.


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Bibliografia essencial: Nelson Saúte, Maputo Blues, Ndjira, Maputo 2006

segunda-feira, abril 16, 2007

Rui de Noronha

CHUVA MIUDINHA

Cai uma chuva gélida, miudinha,
Que mal soa nos zincos dos telhados.
Chuva que gela o corpo, gela a espinha,
E um dia inteiro deixa-nos gelados.

E cai, cai sem cessar, pó de farinha
Que nos deixa na rua enfarinhados.
Cai sem cessar, eterna ladaínha,
Nos nossos corações ajoelhados...

Um vento agreste as árvores perpassa,
Desenrolando um manto de desgraça
Sobre a paisagem húmida, encolhida...

E a chuva continua triste e mansa,
E na minha alma à mesma semelhança,
Cai-me o Passado em chuva comovida...


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terça-feira, abril 10, 2007

Rui de Noronha

QUINHENTA MAIS QUINHENTA, MAIS QUINHENTA...

Quinhenta mais quinhenta, mais quinhenta...
(Se eu fosse enriquecendo assim aos poucos)...
Mas perco, meus amigos e anojenta
Ver mais um louco entre tantos loucos.

Mais vinte e cinco linhas me apresenta,
Digno, firmado, estóico, ouvidos moucos.
Procuração, dinheiro... e água benta...
-Água lhe dava eu de vontade aos socos...

Abre-se a porta. É o Seixas? -Não, é o Graça.
Papel azul, selado... Oh! que desgraça!
Que mais lembrou agora este demónio?

Mais um requerimento. Soma e segue.
Não haverá diabo que o carregue
E leve-mo por graça a um manicómio?


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domingo, abril 08, 2007

Rui de Noronha

À LUZ DO POENTE

Há pouco
Estando olhando o mar,
Tive um desejo louco
De nele me deitar.

A água tão quieta,
Tão limpa e cintilante,
Punha-me pena de não ser poeta
Um só instante,
Para montar-lhe o dorso e ir o mundo fora
Tangendo as leves ondas;
Cantando a luz da Aurora
As pálidas giocondas,
E a grande desventura
Dos que ela enfeitiçou
E numa noite escura
Sepultou…

Dourando-a de revés,
O sol descia lentamente,
E havia no poente,
De quando em vez
hesitações de ouro
Que punham um brando coro
De nostalgia
Nas folhas mais erquidas do arvoredo
Que oscilando a medo
Olhavam tristemente o fim do dia…

E então
mesmo vestido
Vencido o coração,
Vencido o meu sentido,
Eu fui entrando, pouco a pouco,
Lentamente…
E ali me pus nadando como um louco
À luz do poente…


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Bibliografia essencial: Rui de Noronha, Os Meus Versos, Texto Editores, Maputo 2006