domingo, maio 23, 2004

Fonseca Amaral

PARA UM BARCO QUE APODRECE A MEIO DA BAÍA

Ship of the Body, Ship of the
Soul voyaging, voyaging, voyaging.

- Walt Whitman

Velho Liberal, zarcão e ferrugem ao lume de água,
cansado desta costa, tua conhecida como a palma do convés,
encostaste-te a um canto da Baía e ancoraste no sono.
Já não te desperta a malta acenando com o palhinhas
às belas marrusses das vilas costeiras,
nem o tempo em que, a escarrar e a tossir,
(Estibordo, bombordo, tantas braças, toda a estaléca àvante!)
à força de pulso, à chicotada de hélice,
lá ias, mastreado de positivismo e lírica retórica,
varando a Costa, corpo de mulher cingido de água.

Mundo familiar aquele: Funcionários, machambeiros,
magaíças, a casada por procuração,
a alacre gente ribeirinha de Inhambane e Mossuril,
a fumar com o lume dentro da boca,
e um poeta que trazia, de contrabando,
três mancheias de bruma e um rouxinol.
Quantos não fecharam já o definitivo e secreto périplo,
desembarcando lá onde não se exigem
malas, mantas, trouxas, esteiras nem cartas de chamada?

Para ti, meu navio de cabelos brancos, velho colono do mar,
vieram o cansaço, o caruncho a roer-te o casco e as articulações,
o catarro roubando-te galhardia aos silvos
que faziam saltar, bater as palmas
às gentes daqui até à Mocímboa.

Foste amarra de emoção passada entre mar e terra,
mas cansaste-te, meu velho.
Olha, arrasta-te, reumático, ao Cemitério dos Navios
e, «com vossa licença, cidadãos»,
ao lado dos mais aderna um tanto,
ajeita a chaminé debaixo da cabeça,
cerra as pálpebras das vigias,
deixa-te morrer, tristemente morrer,
com esse teu nome a evocar descabelados conluios carbonários,
muito medo para o ganho e imensos lunares de suor.

Prometo-te que nós,
deste cais onde viscoso nembo a viagem nos tolhe,
macilentos, impaludados, te acenaremos, todos os dias,
com um lenço e um sorriso de irónica simpatia.

Farewell my old ship! A água te seja leve.


[81]

Sem comentários:

Enviar um comentário