sexta-feira, novembro 30, 2007

Eduardo White

ÉS A VELA IÇADA

És a vela içada
a quilha que contorna
a carne das águas.
És a tempestade
a chuva premeditada
e eu o náufrago
que não se permite afogado.


[290]

terça-feira, novembro 20, 2007

Rui Knopfli

ACHADO SEM VALOR ARQUEOLÓGICO

Emergirei primeiro uma ranhurada
secção da calota, nota de brancura
dissonante espreitando no denso
verde da relva. Crianças, que adivinho,
correrão insuspeitamente do horizonte.
E virão aguaceiros em bátegas fortes
e a relva vicejará lustrosa e tenra.
De noite, nas noites sem luar,
amantes furtivos hão-de estender-se
rente a mim. A epiderme macia
da rapariga loira roçar-me-á,
com um arrepio brusco, a insensibilidade
nua da fronte: náusea imperceptível
de pronto esquecida na febre
dos beijos e afagos. Após a estiagem
a erva mirrará abrindo claros.
Fitarei, então, pela primeira vez,
ao fim de tão longa vigília,
com a escura fenda que outrora
foi o meu olho esquerdo, o céu
de um azul impoluto e brunido.
A breve trecho, o ângulo tristonho
da maxila, pequena mancha clara,
prenderá a atenção de um menino
de grandes olhos serenos, que há-de
pousar em mim, sem horror, a mansa
e grave curiosidade de seu olhar sonhador.


[289]

domingo, novembro 11, 2007

Armando Artur

(AO RUI NOGAR)

Escrevo-te, melancólico,
estas palavras reverberadas
nas folhas das palmeiras.
A tua ausência ganha,
em mim, a forma dum poema
subitamente inacabado.
O nojo e o frio do teu silêncio
apaga a lógica poética
em que me fundo.
A bordo do teu nome vazio
escrevo-te estes versos
com a azul absurdo deste dia.


[288]

domingo, novembro 04, 2007

Mia Couto

VERSOS DO PRISIONEIRO (6)

O prisioneiro sabe
como são leves as paredes.

E como, de olhos cerrados,
se atravessam os tectos.

Todo o preso
sabe que o carcereiro
padece de mais pesada pena.


[287]