sexta-feira, maio 30, 2003

Noémia de Sousa

POEMA PARA RUI DE NORONHA
- No aniversário da sua morte

Nas matas selvagens da nossa terra natal,
os trilhos abertos a golpe de catana
tomaram uma direcção emocionantemente nova,
única e imutável.
Caminho com picos, ah sim, com espinhos,
mas caminho para nossos pés lanhados,
levando-nos para lá, Poeta...
Ante os novos horizontes abertos em dádiva,
nossas almas passivas aprendem a querer
com força, com raiva,
e se erguem, guerreiras, para a dura luta
e as bocas são uma linha forte e cerrada
no seu não decisivo como sentinela alerta.

Rui de Noronha,
nesta nova África de certezas e forças restauradas,
nos meio dos "paixões" e das bebedeiras do Natal,
vens-me tu, torturado e solitário,
ainda projectado para os fundos abismos do teu eu,
mergulhado em verdes precipícios de tédio
e insatisfação...
Vens-me sangrando de teus amores, Poeta,
tens amores inumanos
com desesperos suicídas e orgulhos brâmanes
te tomando toda a vida de homem.

Mas se tu me vens, Poeta,
desarmado e trágico,
eu te recebo fraternalmente
na capulana quente da minha compreensão
e te embalo com a música da mais doce canção
ouvida da minha cocuana negra...
E tu dormes, Poeta,
dorme teu sono tão desejado,
repousa em fim dessas fictícias tragédias só tuas,
e não atentes na canção...
Deixa que a sua carícia te sare as feridas,
mas não atentes nelas, não!
Que te pode despertar o xipócué do remorso
pois traz em si os feitiços mais poderosos
dos ngomas de Maputo
donde veio minha avó negra.
E talvez te pergunte, docemente:
ah, que fizeste de mim, Poeta,
cego e surdo e insensível,
que fizeste de Áfica, Poeta?
- Que passaste e não a viste?
- Que se ergueu e não a sentiste?
- Que gritou e não a ouviste?
E os remorsos te seriam tão dolorosos
como matacanhas te invadindo o corpo todo, Poeta!

Ai dorme, dorme, Rui de Noronha,
meu irmão,
continua dormindo aprisionado
na palhota maticada do teu eu.
Não atentes na canção - é tarde...

Mas o archote, murcho e fraco,
que as tuas mãos diáfanas mal logravam suster,
deixa que nós o levemos!
Embebê-lo-emos na resina das novas ânsias,
espevitá-lo-emos nas nossas fogueiras acesas,
manter-lhe-emos a vida chama
com lume das nossas esperanças sempre renovadas!

E depois, ah depois,
erguidos ao alto da Vida como um estandarte
por nossas brônzeas, fortes mãos
que a sua chama sanguínea de fulgor inextinguível
nos seja guia e inspiração
esporeando a revolta nascida nas veias entumecidas.

Como um cometa
atravessando a noite de nossos peitos esmagados.

25/12/49


[4]

Bibliografia essencial: Noémia de Sousa, Sangue Negro, Associação de Escritores Moçambicanos, Maputo, 2001

quinta-feira, maio 29, 2003

Rui de Noronha

SURGE ET AMBULA

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo avança, o tempo vai seguindo...
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E no outro tu dormes o teu sono infindo...

A selava faz de ti sinistro eremitério,
onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo.
A terra e a escuridão têm aqui o seu império
E tu, ao tempo alheia, ó África, dormindo...

Desperta. á no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...

Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno...
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz – "Africa, surge et ambula"


[3]

Bibliografia essencial: Rui de Noronha, Sonetos, Tip. Minerva Central, Lourenço Marques (exemplar fotocopiado)

quarta-feira, maio 28, 2003

Rui Knopfli

NATURALIDADE

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raíz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não, é certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.


[2]

terça-feira, maio 27, 2003

Apesar da epígrafe de Natália Correia, este blog destina-se à partilha da literatura em geral, mas sobretudo da poesia, de Moçambique, e constrói-se sob a égide dos poemas de Rui Knopfli. Que, muito naturalmente, o inaugura.


ENTÃO, RUI?

Sobes o barranco, corpo magrote
e alguns empenos, rosto miúdo
nariz agressivo, o olho muito agudo,
ríspido qual ave de presa.
Tu capital a teus pés,
sem que o saiba, longilínea,
alinhada, de carros pequenos
e brilhantes entre acácias de miniatura.
Coças o peito na zona do esterno
num jeito muito teu. E olhas.
Teu olhar tem a curvatura
terna e feroz de uma grande-angular.
Esse perfil distante de cimento
e argamassa é toda uma geometria
decantada e gostosa molhando os quadris
deleitados no charco doce da baía.
Diacho, que perfil mais bonito, hem?
Então, Rui, que é isso,
não vais agora comover-te?


[1]

Bibliografia essencial: Rui Knopfli, Obra Poética, Colecção Escritores dos Países de Língua Portuguesa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003