domingo, maio 15, 2011

Rui Nogar

FABIÃO

O padre da missão falou em Deus. Deus: irmão bom. Falou nos anjos: todos amigos. Falou no céu: oh! céu bom, muito bom. Só não falou nos homens. Homem? Muito complicado mesmo. Todo gente há-de aprender sozinho. É preciso coragem. Coragem e resignação (mas que é “...signação”?). Vida é má. Muito má. Homem também. É preciso aprender sòzinho. Ser bom. Ter bom coração. Quando outra gente faz mal a você é preciso esquecer. É preciso perdoar esse gente. É preciso sofrer. É preciso...

Fabião, mufana ainda, o boca muito aberto, os olho muito aberto, mexeu cabeça, mexeu cabeça – compreendeste sim senhor Padre...

Padre José passou a mão pela testa, onde as teimosas gotas de suor desfizeram-se, escorrendo por entre os dedos curtos e grossos.

Fabião cresceu pouco.

Foi tropa: três anos escravo de caqui, corneta e meu sargento. Três anos em que toda mulher chunguila e todo moleque tinha medo do seu cinturão. Fabião era bom. Mas quem sabia? Fabião era soldado. Soldado não é bom: diz moleque, diz mulher. Fabião era bom, mas só ele sabia, mais ninguém.

Um dia foi na “Lagoas”. Arranjou mulher de todo gente. Esse mulher estava grosso. Com certeza não viu caqui, não viu cinturão, nem sequer viu Fabião. Sentiu aquele braço forte que segurou ela quando ia cair na escada da cantina. Depois, aquele braço forte seguiu ela até colchão.

Mulher está dormir. Ele não sabe ainda como ela chama. Também não interessa. Ele quando voltar ela não conhece ele. Mas ele também não há-de voltar. Palavra!... Mas Fabião está a gostar dela. [É] pena, dinheiro é pouco. Bem! Fabião segurou dinheiro todo, deixou no colchão e foi embora. Mulher de todo gente quando acordar há-de pensar dinheiro caíu do céu. Fabião riu. Lembrou Padre José quando falou no céu. Ih! Céu bom, muito bom mesmo!

Três dia passou. Enfermeiro molungo deu injecção a Fabião porque doença veio. Enfermeiro molungo é bom. Tropa é bom porque tem senhor enfermeiro que cura doença de mulher.

Carregador no cais: um ano contratado. Um ano para perder 4 (quatro) amigos. Um ano enorme e pesado, cheio de lembrança de Padre José que disse: é preciso sofrer. Ah! Padre José!... Padre José!

Primeiro: Salvador. Caíu no porão de “Congo Maru”. Deitou sangue da boca e dos ouvidos. Não disse mais nada. Também, quando Salvador falava, pouco gente compreendia. Ele falava outra língua. De muito longe. Agora, palavra! todo gente parece querer compreender Salvador. Agora todo gente gostava saber falar com Salvador. Agora.

Depois Agostinho e Cipriano na mesma semana. Ficou parecia papa de farinha. Assim mesmo. Só pele, com osso pisado lá dentro.

Agostinho estava trabalhar debaixo de guindaste n.º 10. Cabo que segura aquele saco todo partiu. Era muito saco. Cheio de cimento. Agostinho não teve tempo. Não fugiu. Ficou parecia tinha cola nos pés.

Quando pedreiro vai fazer casa com aquele cimento, há-de ficar casa com pouco sangue de Agostinho. Sangue e vida e medo de Agostinho.

Doze e meia. Cipriano está dormir perto chapa de aço. Muito chapa de aço em cima doutro chapa de aço. Passou combóio perto. Chão fez assim assim. Chapa de aço que estava em cima mexeu, mexeu e caíu. Mesmo na cabeça de Cipriano. Cipriano não acordou nunca mais. Ele tinha cabeça grande e duro. Quando jogava borracha dava cabeçada com força. Maningue força. Partia sempre cabeça de outro gente. Cipriano nunca mais vai jogar porrada. Nunca mais vai dar cabeçada.

Quando estava quase acabar contrato de Fabião, foi Saúl.

Saúl, capataz indígena. Não gritava muito. Não chatiava muito. Carregador gostava dele.

Um dia estava entre dois vagão. Via serviço de contratado. Cantava mesma cantiga de contratado, ih! cantiga de contratado é malcriado. Muito malcriado mesmo. Diz coisa que não pode dizer. Por isso contratado gostava daquele cantiga. Por isso trabalha bem com cantiga. Lingote de cobre pesa menos. Vida custa menos.

Saúl cantava muito bem. Ali perto estava máquina vaivem com manobra. Máquina foi. Escondeu atrás de armazém L. Depois máquina veio. Faz barulho. Não deixa ouvir cantiga. Agulheiro não pode segurar máquina. Voz de Saúl, voz de contratado, voz de máquina é um só. Tudo canta mesma cantiga. Máquina galgou cicatriz de linha. Entrou no caminho errado. Saúl canta maningue bem mesmo! Máquina apanhou primeiro vagão da frente. Chocou. Empurrou. No meio Saúl canta ainda. Vagão correu, agarrou barriga de Saúl – cantiga parou agora mesmo no boca de Saúl – e engatou noutro vagão. Barriga de Saúl engatou também. Cantiga parou. Todo gente correu. Ficou ver tripa de Saúl que baloiça pendurada no engate do vagão. Ambulância gritou e veio levar voz de Saúl. Nunca mais ele vai cantar cantiga de contratado. Cantiga malcriado. Ah! mas a culpa é do cais. Cais não presta. E por isso cantiga é malcriado. E por isso cantiga de malcriado há-de ficar mais malcriado ainda. Muito mais.

Fabião quando saíu última vez no Porta Cinco, cuspiu com força para o chão. Fazia frio. Fabião trazia no corpo farrapos de ganga azul desbotada. O céu lá longe era azul também. Azul desbotado.

Mineiro do Rand: 16 meses soterrado. Dezasseis meses de medo: o grisú, monstro que não se vê, não se cheira, não se pressente a estoirar a todo o momento. Dezasseis meses! Quem sabe se o amanhã não o é para Fabião? Toneladas de terra equilibram-se sobre as formigas e os homens que as imitam. Num segundo podem transformar-se numa imensa sepultura. Todos sabem isso. Mas são dezasseis meses necessários para Fabião e seus companheiros. Libras, pounds irão comprar amanhã casacos de pele de leopardo, calças de bombazine, peúgas e meias de futebol das mais berrantes, sapatos fortes, grosseiros, etc. etc. E depois, lá na terra, a certeza duns braços de mulher.

Fabião economiza. Não compra máquina de costura em quinta mão, nem bicicleta sem roda, nem outra porcaria. Vai fazer palhota maticada. Pintar porta e janela verde com dois risco amarelo. Machamba pequena. Milho, amendoim e mandioca.

Dez meses passou. Fabião não pode dormir. Tosse não deixa. Ele de manhã cedo vai fazer curativo. Depois vai outra vez buscar tosse lá dentro da mina. Falta pouco para acabar contrato. Tosse não pára. Fabião quando voltar para terra não vem sòzinho. É capaz mesmo, esse coisa que acompanha ele, não deixar Fabião chegar no terra. Fazer machamba, palhota maticada com porta e janela verde com dois risco amarelo, semear milho, amendoim, mandioca, arranjar mulher, gastar libra, pound.


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quinta-feira, abril 14, 2011

Rui Knopfli

INVENTÁRIO

Rosas inglesas rosa pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça de ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas

lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta

do No Man's Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,

velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga

dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.


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quinta-feira, abril 07, 2011

José Alberto Sitoe

TOMBAZANA, MAMANA, COCUANA

(à memória de Josina Muthemba Machel, falecida em 7 de Abril de 1971)

sete de abril é teu dia
dia da mulher moçambicana

seja esbelta tombazana
ou mamana de airosa capulana,
hajam cãs de cocuana
sete de abril é o teu dia,
dia da mulher moçambicana

todas és Josina, é teu dia
dia da pioneira na emancipação
da Mulher na mata renascida
que foi obreira na libertação

mulher africana, por graça moçambicana
aquela que é dupla grávida, antes e depois de parir:
no antes traz na barriga o Futuro,
carrega-o às costas quando ele aprende a sorrir

sete de abril é teu dia
dia de lembrar ao mundo
que haja vento, sol ou chuva
batas ou não o pilão no campo,
na mata ou na cidade
há um sorriso que baila e cresce
porque sete de abril é teu dia
dia da mulher que fez a revolução


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