sábado, janeiro 29, 2005

Rui Knopfli

SEM NADA DE MEU

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem) . Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


[127]

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Luís Carlos Patraquim

MORADAS

O rosto da montanha na sombra do vale,
sua macerada inscrição confundindo as pegadas
de quem, ignoto, nem a memória inscreveu
sobre o vento.

Alguém que olha a ausência
e o mais íntimo sinal, sedosa estrela,
uma quase poeira, a viandante terra,
nómada, entre silêncio e nada.

Uma única mão de luz talonando o tempo.


[126]
Bibliografia essencial: Luís Carlos Patraquim, O Osso Côncavo e Outros Poemas, Caminho

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Jall Sinth Hussein

ÍNDICO

Pálida e fria como uma estátua grega
a luz do sol me chama e me habita.
No sul sei que o silêncio passa devagar
por isso me perco no vento que me leva lá.
No sul ouço o dia brotar
e não em outro lugar.


[125]
Bibliografia essencial: Jall Sinth Hussein, Poemas do Índico, Amores Perfeitos.

terça-feira, janeiro 25, 2005

Fonseca Amaral

S’AGAPO

Penélope,
nascida e criada no Alto-Maé,
filha do Kristos da cantina,
neta do Aristóteles da padaria,
vizinha de Karimo o monhé
da esquina,
irmã da helénica Sophia,
vai tecendo
e destecendo
- até ao pôr-do-sol –
tua renda de lençol
- pálida sombra do mito –
enquanto esperas
teu primo Ulisses,
o noivo aflito,
lá do Chibuto,
para as lautas bodas
no Ateneu.

Pois eu,
sem os direitos do grego astuto,
vou gritar no Largo Albasini
- ágora perfeito para tais intentos –
os meus profundos sentimentos
e lamentos.

Que os conheçam
a Polícia
a Milícia
os motoristas
as floristas
os maviques
os caciques
dos buicks
os poetas meus amigos
os colonos, dos antigos,
a casuarina
da esquina
e o cajueiro
do terreiro
- que é quintal
cá para a gente.

Penélope,
vou gritar,
sem cessar,
sem ática contenção,
até enrouquecer
de fazer dó:
S’AGAPO
S’AGAPO
S’AGAPO.


[124]

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Rui Knopfli

VISITAÇÃO (1)

Perfura-me o sono
essa luz estelar, basculante,
puríssimo cristal de lágrimas.
Minha comprida noite desabitada
se enche com a mansa luz dorida
desses olhos irmãos do meu silêncio.
Um pouco de ternura incomensurável
pousa os brandos dedos sobre o meu ombro,
minhas pálpebras, meu sono inquieto
e adoça a nudez fria deste espaço
ora visitado pelo teu rosto querido.
Cerro os olhos de cansaço, na boca
um travo salgado, sabor de mar,
resto de amargura antiga. Ou serão lágrimas
tuas, esse sal vivíssimo, que sinto nos lábios,
como se tivesse beijado os olhos teus tristíssimos?


[123]

sábado, janeiro 15, 2005

Sebastião Alba

O NAVEGADOR

Plena, a cidade
navega o dia. Ao lado,
o mar em que verte.
Passa lentamente,
à sombra, imposta,
do seu meridiano.
Só um vidro faísca:
Há séculos emite
sinais indecifráveis.


[122]

quarta-feira, janeiro 12, 2005

João Paulo Borges Coelho

AS VISITAS DO DR. VALDEZ (excerto II)

Entretanto, lá fora tudo parece funcionar dentro da arrastada normalidade com que sempre funcionou: as figuras públicas dando a sua opinião sobre as coisas aos jornais locais antes de se refugiarem nos clubes a jogar as cartas, por vezes tendo mão (um trio de damas, dois ases), outras sem jogo nenhum; os carpinteiros brancos, com barbas espessas de três dias, passando a caminho da Munhava montados nas suas Florette, nas suas Zundapp, levando atrás, amarradas com tiras de câmaras-de-ar, a caixa das ferramentas e a lancheira cheia se é na neblina fresca da manhã, ou vazia com restos para o gato lá de casa se é no tempo dos fumos e odores vespertinos; os estivadores, em cachos, carregando sacas de serapilheira e vestidos de serapilheira depois de terem dormido em lençóis de serapilheira e comido uma shima cheirando a vapor e a serapilheira, espalhando-se pelo cais como um mar negro e agitado; os médicos dando consultas caras todos os dias, baratas uma vez por semana, receitando misteriosas mensagens em código que só a infinita sabedoria dos farmacêuticos sabe ler, antes de fecharem os consultórios para ir espairecer com as esposas à matiné das cinco; os pescadores saindo para o mar de mãos vazias e voltando ao fim do dia com algum peixe ou quase sem peixe nenhum; as raparigas da Boite Primavera, Zamina, Minita, Irene e Erleny, como outras tantas que vieram antes ou ainda outras que virão depois, passeando-se lentas pela baixa atrás das suas boquilhas e espremidas nos seus hot-pants, dando troco aos marinheiros para que não pensem que os seus piropos ficam sem resposta, antes de recolherem ao redil para enfim se prepararem para os trabalhos da noite; as meninas do Liceu Pêro de Anaia, com longos cabelos castanhos, despertando púberes instintos nos candidatos a namorados e fumando às escondidas dos pais e dos amigos dos pais; o cauteleiro arrastando-se por entre as mesas do café sem pedir licença, alardeando as suas roucas promessas; o monhé da loja coçando os pés atrás do balcão, indiferente aos clientes que lhe esquadrinham a mercadoria, uns para comprar e outros só para ver; os chineses passando as suas couves em pequenas carrinhas rastejantes e exangues, ou vendendo com modos suaves e educados os seus pijamas e camisas de casca-de-ovo, e as suas chávenas de louça fina como pele, com carantonhas no fundo olhando-nos quando bebemos, e nós bebndo sofregamente para salvar das profundezas daquele minúsculo mar esses estranhos afogados; os empregados da câmara municipal fazendo interrupções ao expediente da manhã, imunes ao calor na protecção das suas camisas brancas de casca-de-ovo compradas no Ping Ta e com os bolsos cheios de esferográficas, circulando a caminho do bazar; os contínuos caminhando nas suas estranhas e contraditórias fardas de caqui, a metade de cima um camisa à militar, a de baixo uns calções inocentes como se fossem de criança; os criados batendo tapetes nos quintais, levantando nuvens de poeira; as crianças negras chapinhando em minúsculas lagoas de água da chuva se é depois da chuva, ou na lama quase seca se é dia de sol, com as suas barrigas redondas e os olhos irradiando uma alegria inventada a partir de motivo nenhum; as crianças brancas irradiando essa mesma alegria, chapinhando na praia do Clube Náutico, nas poças de água do mar; os jovens rebeldes do Oceana fumando suruma para inventar outra cidade tão encalhada e viva quanto esta; os corvos negros de peitilho branco passeado-se lentamente pela Praia do Veleiro, crocitando nos ramos das casuarinas com voz idêntica à do cauteleiro vendedor de promessas nos cafés; os barcos imensos e descarnados, presos no areal, soltando esquírolas de ferrugem, lágrimas ferrugentas da dor que é a humilhação de acabar daquela maneira, longe das profundezas; os rodesianos cor-de-rosa e sardentos chegando em revoada com as suas filhas belíssimas muito brancas para comer camarões e beber cerveja, e em revoada partindo; os arquitectos fazendo casas modernas para terem onde morar, e os pobres casas de lata e capim para terem onde sofrer, a cada qual o seu telhado; os cozinheiros cozinhando souflés e gigantescos mariscos cor-de-rosa como o gigantesco John Dale se é de dia, as suas mulheres shima com camarões magros e secos como Ganda se é de noite, para enfim todos terem o que comer, cada qual à sua mesa; a bicicleta branca dos ice-creams passando a tilintar, anunciando os cones pontiagudos se é Esquimó, de fundo chato se é Alasca, e Vicente correndo atrás dela com as moedas na mão para trazer um sorvete de chocolate, secreto capricho de Sá Caetana; o pão que os padeiros cozem de madrugada espalhando o seu cheiro bom e universal sobre a cidade, igual para toda a gente, amolecendo no chá dos pobres a sua integridade ou deixando derramar sobre as suas fatias um cacho de ovas de caviar importado; as mulheres dos oficiais escrevendo romances melancólicos como murmúrios que as entretenham da angústia da espera; os padres conspirando nas suas inócuas capelas, na falta de alguém mais adequado para o fazer; os soldados chegando e partindo com as mãos cheias de sangue e os olhos de pavor; os combatentes no mato, diz-se em surdina, fazendo fogueiras e conspirando; os pides, atrás dos óculos negros, tomando cafés no Café Capri, vestidos com camisas brancas de casca-de-ovo dos chineses e fingindo estar de folga mas na verdade trabalhando; o mangal secando, mal-grado o desespero dos minúsculos caranguejos; o mar paciente e obstinado engolindo lentamente a terra na Praia dos Pinheiros e no Macúti, em todos os lugares; as marés cheias e vazias dando a cada uma o seu lugar, mas cada vez as marés cheias sendo mais cheias; e os dias de sol sucedendo-se uns aos outros, com dias cinzentos e chuvosos pelo meio.


[121]

sábado, janeiro 08, 2005

MATAPA SABOROSA

½ kg de folhas de mandioca
6 dentes de alho
4 malaguetas
1 colher de chá de sal
1 chávena de camarão seco e sem as cabeças
2 cocos
1 chávena de farinha de amendoim


Escolhem-se as folhas mais tenrinhas, lavam-se e pisam-se, com alho e malagueta num pilão ou na máquina. Põem-se numa panela a cozer sem água e um pouco sal. Depois de secar a água natural deita-se o camarão seco pilado, e em seguida o leite de coco e deixa-se ferver. Por fim, deita-se a farinha de amendoim e deixa-se apurar durante uma hora.As folhas de mandioca podem ser substituídas por folhas de couve. Se desejar confeccionar matapa à moda makua substitua o amendoim pela castanha de caju.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Links importantes:
O site Macua de Moçambique, e principalmente a sua biblioteca, à sombra de cujos palmares este blog se irá sentar.
A livraria Mabooki (Livros e Mais), especializada em temas africanos.

terça-feira, janeiro 04, 2005

Rui Knopfli

A PEDRA NO CAMINHO

Toma essa pedra em tua mão,
toma esse poliedro imperfeito,
duro e poeirento. Aperta em
tua mão esse objecto frio,
redondo aqui, acolá acerado.
redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito
bruto. Uma pedra, uma arma
em tua mão. Uma coisa inócua,
todavia poderosa, tensa,
em sua coesão molecular,
em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida
ensolarada, tu és um homem
um pouco diferente. Ao meio-dia
na avenida tu és um homem
segurando uma pedra. Segurando-a
com amor e raiva.


[120]