sábado, julho 31, 2004

Bibliografia essencial: Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana, Org. e Prefácio Nelson Saúte, Dom Quixote

sábado, julho 24, 2004

Sebastião Alba

NINGUÉM MEU AMOR

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


[92]

quinta-feira, julho 22, 2004

Isabella Oliveira

M. & U. COMPANHIA ILIMITADA (excerto)

Com o aproximar da meia-noite, qualquer sirene, qualquer foco de luz que se acendesse, incendiava o estádio. Seria o Presidente?, é que o tempo passava e a festa nunca mais começava! Das bancadas ao lado, chegavam explicações, através dos múltiplos transístores com que o povo seguia aquelas horas. A chuva estava a provocar inundações e engarrafamentos nos acessos à Machava, havia carros avariados e muita gente a sair dos machimbombos, preferindo fazer o percurso a pé.
Passou a meia-noite e continuávamos por nascer. Até que, uma eternidade depois, um carro, ladeado por motas e sempre iluminado por focos de luzes, passou o túnel e entrou na pista, que percorreu a baixa velocidade, sob o incansável e delirante aplauso geral. Quando parou e a porta de trás se abriu, percebi então o que é que deverá sentir um crente, caso alguma vez lhe venha a ser dada a oportunidade de ver, finalmente, o seu Deus. Não há outras palavras para descrever o meu encontro com o sorriso e o brilho de felicidade no olhar humano com que o Presidente saiu do carro e deu os primeiros passos. O herói maior da parede do meu quarto estava ali e eu estava a vê-lo! Ainda bem que naquele momento estava sozinha, no meio das escadas que dividiam as três ou quatro filas de bancadas por que era responsável, assim ninguém me distraiu.
Instalado o Presidente, entrou no estádio, a correr, o último homem. Também ele atravessou a pista, mas para subir ao extremo oposto do túnel, erguendo na mão o facho aceso da Liberdade que, um mês antes, entrara com o Presidente em Moçambique. Quando o ateou na pia do estádio, foi mais uma vez o delírio geral. Agora, sim, do Rovuma ao Maputo, podia ser declarada a independência!
 
Se a chegada do Presidente foi, para mim, uma sensação difícil de ser ultrapassada, o momento seguinte rebentou o estádio: era o sonho a concretizar-se!
Lado a lado, fardados, entraram no relvado duas filas de homens de exércitos diferentes. Por Portugal, um representante de cada um dos três ramos das forças armadas e, por Moçambique, três guerrilheiros da FRELIMO. O da frente vai actuar num palco muito diferente daquele em que, há quase doze anos atrás, deu o primeiro tiro que, no Chai, iniciou a guerra de libertação. Ninguém mais do Alberto Chipende merece estar ali. Começa então a descer a bandeira portuguesa e o povo grita «BAIXA!, BAIXA!». Quando o estandarte das quinas chega à base do mastro, principia a sua ascensão, como que envolta numa auréola de luz (talvez devido ao efeito da chuva, a cor amarela sobressaía), a bandeira da minha Utopia. Tive então a sorte de cair em mim, ainda que apenas por poucos segundos, para poder observar o espectáculo único de todo aquele êxtase e, também por mero acaso, fixar as duas lágrimas que escorriam do tatuado rosto maconde de Sebastião Mabote, o mais guerrilheiro dos elementos do Comité Central. Depois, voltei a mergulhar na nossa festa, como era bonita a bandeira de Moçambique!
 
Alinhada no centro do relvado, a banda fez então soar o hino nacional, por todos cantado a plenos pulmões:
 
Viva, viva, a FRELIMO
Guia do povo moçambicano
Povo heróico que arma em punho
O colonialismo derrubou
 
Todo o povo unido
Desde o Rovuma ao Maputo
Luta contra o imperialismo
Continua e sempre vencerá
 
Coro:
Viva Moçambique,
Viva a bandeira, símbolo nacional,
Viva Moçambique,
Que por ti o povo lutará!
 
Unido ao mundo inteiro
Lutando contra a burguesia
Nossa pátria será túmulo
Do capitalismo e da exploração
 
O povo moçambicano
De operários e de camponeses
Engajado no trabalho
A riqueza sempre brotará
 
Na tribuna, sucederam-se os aplausos. Depois o Presidente avançou para o microfone, cabia-lhe agora proclamar a Independência, mas, por causa da chuva, a electricidade falha e não há som. Quando reaparece, o Presidente pergunta ao povo, «Estão-me a ouvir?», é arranjo de poucos segundos. Nova tentativa e o Presidente incita o estádio a acompanhá-lo numa canção revolucionária. Desta vez, o povo responde. Samora Machel repete as palavras com que, a 25 de Setembro de 1964, Eduardo Mondlane declara o início da guerra de libertação e, a seguir, ouviram-se as palavras mágicas: Moçambicanos, moçambicanas, em vosso nome, às zero horas de hoje, 25 de junho de 1975, o Comité Central da FRELIMO proclama solenemente a Independência total e completa de Moçambique e a sua constituição em República Popular de Moçambique!
 

[91]
Bibliografia essencial: Isabella Oliveira, M. & U.  Companhia Ilimitada, Ed. Afrontamento

segunda-feira, julho 19, 2004

Mutimati Barnabé João
 
DIA 7
 
No dia 7
Morreu uma camarada que vai ficar insepulta
Que vai tornar o ar perfumado e morreu
Que vai dar sempre flor de coragem e está morta
Que era da família nossa e ninguém vai chorar
Que os camaradas sabiam importante mas ela não
E vai ficar insepulta porque é um grande cadáver
E não há terra suficiente para cavar esta sepultura.
 
É assim mesmo
Quando alguém cresce até ao tamanho do Povo
Fica por enterrar porque é muito grande.
O Herói não tem sepultura.
 
 
[90]

domingo, julho 11, 2004

Rui Knopfli

NUNCA MAIS É SÁBADO!...

- conjecturamos à segunda-feira,
início de uma longa ressaca,
em todas as claves, desde o ré menor
gemebundo aos claros tons de sol maior.
Nós os humildes e os humilhados,
os que não temos rosto próprio porque somos
o rosto da multidão. Nós, o branco-branco,
o preto-preto e o branco-preto.
O senhor que desce o elevador da manhã
e a virgem desflorada na véspera
que o sobe trazendo nos olhos o pavor
da gravidez e da desonra (e é obrigatória
em todos os articulados deste género). E a moça
desflorada há mais tempo. Um namorado
tímido e um senhor casado a compensar
a timidez do adolescente, com a ciência
mais exacta, mais precisa, que lhe vem
do tédio conjugal. E o velho guarda negro
do elevador, a piscar, a piscar um sono
nunca redimido. E o contínuo que não vai
de elevador, mas sobe pela escada de serviço
até ao quinto andar, carregando em jeito
de via sacra a bicicleta da firma,
cada qual trepando a seu Gólgota privativo.
E os que esperam para lá da penumbra
dos balcões, no silêncio húmido dos armazéns,
no bafio burocrático e gris das repartições
com funcionários de vida atribulada
funcionários de vida empenhada,
funcionários de vida sempre estragada.
Os que esperam na jaula envidraçada dos cafés,
fumando o cigarro bronquítico da melancolia;
na fuligem luminosa do cais, nas zonas
de carga e descarga, na longa fita de asfalto
ardente, na perigosa articulação dos ângulos
de betão do prédio de onze andares.
Os que uma regra de excepção escondeu
por detrás dos altos muros de um silêncio
recluso e têm o olhar mortiço
e a expressão resignada. Os que dormitam
atentos, em bancos públicos de jardim,
os que fazem um amor rápido e dolorido
a horas impróprias, em apartamentos de empréstimo.
O estudante com a mão entalada nas coxas
firmes e tépidas da colega morena e sensual,
o marinheiro adormecido na branca espuma
da sétima cerveja, as putas adejando,
multicolores borboletas de vício, blenorragias
de transmissão fulminante e cura arrastada.
Os que alimentam de miséria a sua miséria
e outros que, estando melhor, a nutrem
na miséria de pequenas e grandes indústrias.
E os que nem sequer a alimentam
no lôbrego ventre de oficinas e fábricas.
Toda a população flutuante do elevador
e da escada de serviço, do prédio e da rua;
o senhor engenheiro com uma dor de corno
e dois projectos enguiçados; o clínico preso
aos afazeres (cinco prédios, uma hérnia estrangulada
e o consultório cheio de pacientes); o advogado
a correr atrás dos prazos, dos prazos
cada vez mais curtos; a senhora enfrentando
a crise difícil da menopausa, a viúva
de negro que vai ao médico com uma pontada
no baixo-ventre e uma amostra de urina
em frasco embrulhado em papel de jornal.
Da escada de serviço e do elevador
para o prédio, do prédio para a rua,
da rua para a praça, da praça para a cidade,
da cidade para o subúrbio, onde crescem
a doença, p medo, a fome e o futuro,
- nunca, nunca mais é sábado.


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