Isabella Oliveira
M. & U. COMPANHIA ILIMITADA (excerto)
Com o aproximar da meia-noite, qualquer sirene, qualquer foco de luz que se acendesse, incendiava o estádio. Seria o Presidente?, é que o tempo passava e a festa nunca mais começava! Das bancadas ao lado, chegavam explicações, através dos múltiplos transístores com que o povo seguia aquelas horas. A chuva estava a provocar inundações e engarrafamentos nos acessos à Machava, havia carros avariados e muita gente a sair dos machimbombos, preferindo fazer o percurso a pé.
Passou a meia-noite e continuávamos por nascer. Até que, uma eternidade depois, um carro, ladeado por motas e sempre iluminado por focos de luzes, passou o túnel e entrou na pista, que percorreu a baixa velocidade, sob o incansável e delirante aplauso geral. Quando parou e a porta de trás se abriu, percebi então o que é que deverá sentir um crente, caso alguma vez lhe venha a ser dada a oportunidade de ver, finalmente, o seu Deus. Não há outras palavras para descrever o meu encontro com o sorriso e o brilho de felicidade no olhar humano com que o Presidente saiu do carro e deu os primeiros passos. O herói maior da parede do meu quarto estava ali e eu estava a vê-lo! Ainda bem que naquele momento estava sozinha, no meio das escadas que dividiam as três ou quatro filas de bancadas por que era responsável, assim ninguém me distraiu.
Instalado o Presidente, entrou no estádio, a correr, o último homem. Também ele atravessou a pista, mas para subir ao extremo oposto do túnel, erguendo na mão o facho aceso da Liberdade que, um mês antes, entrara com o Presidente em Moçambique. Quando o ateou na pia do estádio, foi mais uma vez o delírio geral. Agora, sim, do Rovuma ao Maputo, podia ser declarada a independência!
Se a chegada do Presidente foi, para mim, uma sensação difícil de ser ultrapassada, o momento seguinte rebentou o estádio: era o sonho a concretizar-se!
Lado a lado, fardados, entraram no relvado duas filas de homens de exércitos diferentes. Por Portugal, um representante de cada um dos três ramos das forças armadas e, por Moçambique, três guerrilheiros da FRELIMO. O da frente vai actuar num palco muito diferente daquele em que, há quase doze anos atrás, deu o primeiro tiro que, no Chai, iniciou a guerra de libertação. Ninguém mais do Alberto Chipende merece estar ali. Começa então a descer a bandeira portuguesa e o povo grita «BAIXA!, BAIXA!». Quando o estandarte das quinas chega à base do mastro, principia a sua ascensão, como que envolta numa auréola de luz (talvez devido ao efeito da chuva, a cor amarela sobressaía), a bandeira da minha Utopia. Tive então a sorte de cair em mim, ainda que apenas por poucos segundos, para poder observar o espectáculo único de todo aquele êxtase e, também por mero acaso, fixar as duas lágrimas que escorriam do tatuado rosto maconde de Sebastião Mabote, o mais guerrilheiro dos elementos do Comité Central. Depois, voltei a mergulhar na nossa festa, como era bonita a bandeira de Moçambique!
Alinhada no centro do relvado, a banda fez então soar o hino nacional, por todos cantado a plenos pulmões:
Viva, viva, a FRELIMO
Guia do povo moçambicano
Povo heróico que arma em punho
O colonialismo derrubou
Todo o povo unido
Desde o Rovuma ao Maputo
Luta contra o imperialismo
Continua e sempre vencerá
Coro:
Viva Moçambique,
Viva a bandeira, símbolo nacional,
Viva Moçambique,
Que por ti o povo lutará!
Unido ao mundo inteiro
Lutando contra a burguesia
Nossa pátria será túmulo
Do capitalismo e da exploração
O povo moçambicano
De operários e de camponeses
Engajado no trabalho
A riqueza sempre brotará
Na tribuna, sucederam-se os aplausos. Depois o Presidente avançou para o microfone, cabia-lhe agora proclamar a Independência, mas, por causa da chuva, a electricidade falha e não há som. Quando reaparece, o Presidente pergunta ao povo, «Estão-me a ouvir?», é arranjo de poucos segundos. Nova tentativa e o Presidente incita o estádio a acompanhá-lo numa canção revolucionária. Desta vez, o povo responde. Samora Machel repete as palavras com que, a 25 de Setembro de 1964, Eduardo Mondlane declara o início da guerra de libertação e, a seguir, ouviram-se as palavras mágicas: Moçambicanos, moçambicanas, em vosso nome, às zero horas de hoje, 25 de junho de 1975, o Comité Central da FRELIMO proclama solenemente a Independência total e completa de Moçambique e a sua constituição em República Popular de Moçambique!
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quinta-feira, julho 22, 2004
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E assim nasceu o mais bonito dos países!!!
ResponderEliminarObrigada, Miguel!_ IO
Foram dias de festa inesquecíveis que nunca mais se voltarão a viver e que o M & U tão bem descrevem.
ResponderEliminarpeço desculpa.....queria dizer, descreve.
ResponderEliminarUm que é orgulhoso em receber a amizade da autora. Carlos Gil
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