sábado, agosto 28, 2004

Júlio Carrilho

PORTA DE ÁGUA

Quarenta e tal quilómetros quadrados
de modorras viradas para a praia
escoam dos solares escancarados
a deixar os mortos a olhar
luzentes cristais de água de cambraia

Não sei ainda se isto é alegria
deixada até ao estoiro da miséria
mas a calma tecida dia-a-dia
tem o vagar da pressa que se quer
no endógeno assumir-se de matéria

Ah porta minha que deste as águas
para buscar as faces da verdade
hoje descontraída em tuas mágoas:
não tens a quem explicar o teu saber
que a nudez distorce sem maldade

Teremos que esperar que se decante
no teu líquido palco o som dos remos
se afinem silhuetas de ar cortante
para depois por ruas sem licença
abrirmos planos que só nós podemos


[98]

quinta-feira, agosto 19, 2004

Alberto de Lacerda

A MINHA ILHA

Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam
No meio da rua como peregrinos
Dum mundo mais aberto e cristalino


[97]

domingo, agosto 15, 2004

Leite de Vasconcelos

RECEITA PARA UMA INFRACÇÃO

Poderia ser para o Dr. Albertino Damasceno
mas é, mais simplesmente e com amizade,
para o Tino

Toma nas mãos uma manga
dessas que verdes o Knopfli sente
na infância do palato
Tens cinquenta anos
dois rins em greve até à morte
e um que pertenceu a alguém que desconheces
e por morto não soube a quem doou
a faculdade de mijar ainda
Uma hérnia dizem-te que discal
desferidora de zagaias contra a coxa esquerda
mal consentes o pretexto de um movimento
menos respeitoso
impede que com manga e canivete
subas à forquilha de uma árvore
além de que tens mais de cubicagem
que força para elevá-la a músculos
De músculos falando
o cardíaco funciona menos mal
mas a tensão tende a subir
se não cortas o sal pela raiz
Falam-te também de certas precauções
que o fígado prescreve
e o baço embora menos determina
Apesar do sobredito toma nas mãos a manga
goza nas mãos primeiro sua redondez e consistência
dedilha a promessa da insídia mais adiante
Interdita a altura da árvore Paciência!
Faz-te Robin dos Bosques rasteiro
com bojo de frei Tuck e senta-te na sombra
(seria mais indigno subires por uma escada)

Agora com canivete e ternura fende a manga
mas guarda-te de a escalpares
Deves sentir dela a pele e o íntimo
como quando se beija uma mulher
Manda ao diabo a tensão
e deixa repousar por um momento em decúbito ventral
o pedaço de manga numa cama de sal
de preferência grosso por forma a que dois ou três grãos
adiram à carnação Não cerres os olhos É preciso
misturar a manga o sal a luz o remexer das folhas
e a eventualidade de acidentes felizes
como saltar num ramo o xitotonguana azul do Craveirinha
Atentamente morde e devagar
até que o imaturo açúcar desentranhe
se desprenda venha salpicar de infância
as papilas do tempo e liquefaça o sal em lágrima
mas lágrima feliz de ácidas memórias
como suor de corrida correndo nos lábios
polpa de maçanica beijo entre canas fruto de embondeiro
casca de tangerina espremida junto aos olhos

Toma uma verde manga como um rio
uma simples manga de Novembro
de ti para ti transplantada
nos dezembros da vida


[96]

quinta-feira, agosto 12, 2004

Heliodoro Baptista

À VOLTA DAS ORIGENS

Ao Rui Knopfli e ao Eugénio de Andrade

Sim, de facto, «uma só e várias línguas
eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria».

Outros vieram e estão
na curva ambulatória do terreno,
entrecortando a escrita ao sol
com a que, na bruma, lascivo lugar
dos malditos de esgares cínicos
mas persuasivos,
estrangula, subverte também
a repulsa.

Alguns reencarnam, voltam a nascer
de uma emoção que, anos atrás,
os condicionou, e isso tem sido notícia,
curiosidade incorporada
na astúcia discreta dos que triunfam
pelos propósitos trazidos
há um quarto de século.

Palmeiras, casuarinas, eucaliptos,
micaias, planuras, mangueiras, enfim,
a ainda inacabada totalidade do país amado,
tudo existe, não é mitológica passagem
de forças cujo núcleo, por estranho, também,
que pareça, é uma ordem desordenada,
uma certeza de mil incertezas,
mas isenta já de prodígios,
confusa e humana.

Nós outros, como vós, os que virão,
baixos-relevos das mais remotas
e tranquilas paisagens onde o tempo urge
propostas originais,
desencadearemos talvez a infidelidade
a outros mitos que a escrita, impressiva,
esconjura nos significantes.
Suportemos, como compensação, os impulsos dos néscios.


[95]

terça-feira, agosto 03, 2004

Carlos Cardoso

RUTH FIRST

Isto dos mortos não falarem
não sei.
É que de certos mortos
costumam nascer embondeiros
de raiva
no capim da hesitação.


[94]

domingo, agosto 01, 2004

Nelson Saúte

TESTAMENTO PARA OS MEUS FILHOS

Mayisha e Irati:
este o magro pecúlio que vos deixo
- livros, papéis, sonhos.
Poemas para as mulheres
que amei. Hinos de amor à vossa mãe.
Filhos, só vocês dois.
Depois de mim herdarão o nome
e a tarefa de perpetuar o que progenitor
encetou. Fica para trás uma vida.
Ilusões, cansaços, combates.
Infrutífero desespero de viver
num país apátrida.
Deixo-vos estes desígnios
de coisa nenhuma. Algum pecúlio
um coração, bondade e alguma fé
doméstica. Amanhã estes homens
e mulheres que se festejam
na algazarra das vozes e na luz
de artifício nada terão para vos dizer.
Oiçam então a voz do progenitor
que não sucumbe às vozes
nesta madrugada primeira
do vigésimo primeiro século.
Estas vozes digo-vos estarão
apagadas pela cinza do tempo
e do esquecimento.
Vosso pai afagar-vos-á
com a mesma ternura enquanto vivia
e levar-vos-á a passear pelas ruas da memória
com a mesma ilusão que vos alberga
nesta pequena casa que também vos deixa.
Para trás ficará um tempo
mas não ficarão os homens que destroçaram
a minha geração, meus filhos.
Não ficarão os sonhos e ilusões
nem a lembrança inconsútil da barbárie.
Espero que resista a honra deste homem
que está por detrás destes versos e que um dia
curvados sobre a sua tumba
vocês digam sem vergonha: Pai


[93]