segunda-feira, maio 03, 2004

Suleiman Cassamo

O RASCUNHO

Corri atrás do ardina. É sempre com o coração nas mãos que, pela manhã, corro atrás do ardina. A escrita de um texto não acaba. Vai-se da primeira à última versão, corta-se-lhe as rebarbas, afina-se-lhe a pauta. Mas há sempre uma excrescência, um incongruência que se nos escapa.
A isto, junte-se as gralhas, a má composição, o carácter desfalecido no vigos da página, frases amassadas tipo arroz mal cozido.
É isto que faz a aflição do escriba. Ver como ficou, na face da página, o rosto do seu texto. O escritor de verdade não procura o estrondo do seu nome, mas a certeza de ir descansado, o jornal debaixo do braço, e deitar-se sobre a página aberta, a urdir a próxima aventura.
Nessa manhã, não. Não tive sossego. Ao desfraldar o matutino, no lugar da depurada, enxuta e desgralhada crónica, choco, vejam só, com o rascunho. Sim, o rascunho. Que após fixar o esqueleto do texto, havia amarrotado para a lata do lixo.
Corri até ao jornal: Redacção, Composição, Maquetização, Impressão e Revisão. Nada. Não só não sabiam explicar como também não haviam notado.
Exigi o texto de partida. E, agora que não há mais chumbos de linotipia, a disquete. Essas e demais provas eram fiéis ao original. Posta de lado também a possibilidade de alguém ter recuperado o rascunho, tão esmigalhado o deixara.
Só restava uma hipótese: farto de ser ignorado, o rascunho passara, discreto e rebelde, impregnado debaixo da substância visível do texto em evolução. Só no último momento empurrou a forma eleita, e caminhou para a meta.
Que fazer? Tivesse posses, comprava toda a tiragem e mandava destruir. Mas o matutino já estava na rua, mais esse meu texto cruelmente cru, se alastrando parece queimada.
Fiquei doente, recolhido. Que volte face, a do rascunho. Destruído como se fosse prova de vergonha, agora me esmagava!
Naquela mesma tarde, as cartas começaram a assediar a minha porta, a sitiar-me. Não precisava abrir: me acusariam de abuso de confiança, de abuso de liberdade de expressão, um rol de coisas, enfim, de estender no jornal as minhas cuecas.
Engano meu. «Nunca foste tão sincero contigo próprio», reagiam os leitores, «o mesmo que dizer, connosco.»
«Não imaginamos», lia-se num abaixo-assinado, «quanto se perdeu. Por autocensura de motivação política, moral, ou religiosa. Ou por egoísmo apenas. Aquilo que você cortava no fim. Não imagina quanto se perdeu nisso.»
Afinal, a dinâmica e a fluidez dos textos anteriores eram em detrimento da ira, do sabor agreste do esboço, da tinta do coração.
Um padre comentava: «O rascunho marca o primeiro impulso, a verdade não-manipulada, o que, muitas vezes, o coração diz e a boca cala. Se o Homem falasse rascunho não havia necessidade de confissão.»
Ninguém o dizia de caras, mas a insinuação era clara: rasgue os textos decantados, publique os rascunhos. Isto é, um fórmula antifórmula, uma escrita no sentido anti-horário.
Desnecessária a sugestão. Ao fim e ao cabo, pretendendo escrever direito, se escreve torto. Mesmo este texto, na sua aparência depurada, tal como o Homem dos nossos dias à luz do projecto divino, não passa de um rascunho.


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