sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Sebastião Alba

ESTÁ QUEBRADA

Está quebrada a asa do pequeno mocho; os tecidos dilacerados. Fita-me com os olhos de ouro, invisuais, de predador, que eu já vi nos leões. O desamparado espanto de viver de todos os seres, mesmo dos mais ferozes.


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sexta-feira, fevereiro 16, 2007

João Paulo Borges Coelho

CRÓNICA DA RUA 513.2 (excerto/5)

A dona Guilhermina, pragmática, pouco interessavam as justificações. Se o Zeca olhasse em volta, se se dispusesse a largar um certo caderno e um certo automóvel (ambos sem préstimo nem solução), se se decidisse enfim a sair à rua como toda a gente, veria que, a par da crise de todos os dias também todos os dias se abriam possibilidades de sair dela.
- Como, possibilidades?
Dona Guilhermina exemplificou uma delas: segundo o Secretário Filimone, o Estado dispunha-se a fornecer barcos de pesca a quem quisesse pescar. O Zeca devia ao menos tentar.
- Como, tentar? – perguntou Ferraz cautelosamente.
Vinha do Chókwè, do interior. Exercia a arte concreta do apertar e desapertar coisas, afinar. Desconfiava da escorregadia superfície do mar, da imprevisibilidade dos seus humores.
- Tentar tentando! – retorquiu ela, agastada.
Adquirindo um dos tais barcos, contratando pescadores, sabia lá! A única coisa que sabia é que o via zanzando por ali enquanto ela própria passava o dia fora, num trabalho, ou melhor, em dois ou três trabalhos propriamente ditos.
E foi assim que o mecânico Ferraz, depois de arrancado à garagem e encostado à parede, foi empurrado para a pesca.


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sábado, fevereiro 10, 2007

Eugénio Lisboa

TRANSPARÊNCIA

Morrer é só não ser visto,
é sair de ao pé de ti,
apagar-me em tudo isto,
deixar de ver o que vi.

Morrer é não estar em ti,
e mais do que não te ver,
é não ser visto por ti,
no deserto do não ser.

Morrer é como apagar-se
a chama que houve em nós,
é uma espécie de ficar-se
vazio da própria voz.

Vive o amor da atenção
que se tem por quem se ama.
Mas a morte atiça em vão
o fio que não dá chama.

Morrer é só não ser visto,
é passar a pertencer
a um livro de registo
que guarda o nosso não-ser.


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