sexta-feira, abril 30, 2004

Orlando Mendes

INSTANTE PARA DEPOIS

A tarde viva está quase vazia
na esplanada represa de sombra morna.
Seis velhos mastigam recordações
com dentes cariados da memória
e o dia-a-dia com as falhas dos dentes.
Olhos distantes sobre os livros
e mãos e pernas entrelaçadas
um casal jovem intimamente suborna
o tempo minuto a minuto seguinte.
Na berma do passeio mufana parado
estende os dedos pedindo quinhentas
nem se sabe porquê e ninguém dá.

Passa um jipe da polícia militar
e um dos velhos mastiga em segredo
que aquilo anda muito pior por lá.
Os dentes e as falhas cessam de mastigar
recordações e a suave cadência dos pulsos
e a moça levanta os olhos húmidos
mufana encolhe os dedos e desliza
inteiro ao sol da rua e assobia
não se sabe porquê e ninguém sente.

Batem horas num relógio distante
e o jovem casal parte subitamente
para o seu primeiro acto de posse.
A tarde fica então mais vazia
com os velhos mastigando a voz sibilada
no dia raso à sombra morna.

Reina a paz na esplanada laurentina


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domingo, abril 25, 2004

Noémia de Sousa

BAYETE

para Rui Knopfli

Ergueste uma capela e ensinaste-me a temer a Deus e a ti.
Vendeste-me o algodão da minha machamba
pelo dobro do preço por que mo compraste,
estabeleceste-me tuas leis
e minha linha de conduta foi por ti traçada.
Construíste calabouços
para lá me encerrares quando não te pagar os impostos,
deixaste morrer de fome meus filhos e meus irmãos,
e fizeste-me trabalhar dia após dia, nas tuas concessões.
Nunca me construíste uma escola, um hospital,
nunca me deste milho ou mandioca para os anos de fome.
E prostituíste minhas irmãs,
e as deportaste para S. Tomé...

- Depois de tudo isto,
não achas demasiado exigir-me que baixe a lança e o escudo
e, de rojo, grite à capulana vermelha e verde
que me colocaste à frente dos olhos: BAYETE?


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quinta-feira, abril 22, 2004

Rui Knopfli

INVENTÁRIO

Rosas inglesas rosa-pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça do ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas

lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta

do No Man’s Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,

velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga

dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.


[75]

quinta-feira, abril 08, 2004

Rui Knopfli

AEROPORTO

É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.


[74]

quarta-feira, abril 07, 2004

Noémia de Sousa

MOÇA DAS DOCAS

A Duarte Galvão

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,

Viemos...
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos....
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas...
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos...
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta...

E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade...

E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável...

Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Poedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!


[73]

segunda-feira, abril 05, 2004

Rui Knopfli

HIDROGRAFIA

São belos os nomes dos rios
na velha Europa.
Sena, Danúbio, Reno são
palavras cheias de suaves inflexões,
lembrando em tardes de oiro fino,
frutos e folhas caindo, a tristeza
outoniça dos chorões.
O Guadalquivir carrega em si espadas
de rendilhada prata,
como o Genil ao sol poente,
o sangue de Federico.
E quantas histórias de terror
contam as escuras águas do Reno?
Quantas sagas de epopeia
não arrasta consigo a corrente
do Dniepre?
Quantos sonhos destroçados
navegam com detritos
à superfície do Sena?
Belos como os rios são
os nomes dos rios na velha Europa.
Desvendada, sua beleza flui
sem mistérios.
Todo o mistério reside nos rios
da minha terra.
Toda a beleza secreta e virgem que resta
está nos rios da minha terra.
Toda a poesia oculta é a dos rios
da minha terra.
Os que cansados sabem todas
as histórias do Sena
e do Guadalquivir, do Reno
e do Volga
ignoram a poesia corográfica
dos rios da minha terra.
Vinde acordar
as grossas veias da água grande!
Vinde aprender
os nomes de Uanétze, Mazimechopes,
Massintonto e Sábié.
Vinde escutar a música latejante
das ignoradas veias que mergulham
no vasto, coleante corpo do Incomáti,
O nome melodioso dos rios
da minha terra,
a estranha beleza das suas histórias
e das suas gentes altivas sofrendo
e lutando nas margens do pão e da fome.
Vinde ouvir,
entender o ritmo gigante do Zambeze,
colosso sonolento da planura,
traiçoeiro no bote como o jacaré,
acordando da profundeza epidérmica do sono
para galgar os matos
como cem mil búfalos estrondeantes
de verde espuma demoníaca
espalhando o imenso rosto líquido da morte.
Vede as margens barrentas, carnudas
do Púngoé, a tristeza doce do Umbelúzi,
à hora do anoitecer. Ouvi então o Lúrio,
cujo nome evoca o lírio europeu
e que é lírico em seu manso murmúrio.
Ou o Rovuma acordando exóticas
lembranças de velhos, coloniais
navios de roda revolvendo águas pardacentas,
rolando memórias islâmicas de tráfico e escravatura.


[72]

quinta-feira, abril 01, 2004

João Dias

INDIVÍDUO PRETO

A classificação dos concursos para chefe de secção está no gabinete do sub-director dos Caminhos de Ferro, claramente explícita e assinada pelos membros do júri. Falta só a ratificação por ordem do sub-director.
Tudo se passa, aparentemente, como se se tratasse apenas de uma rubrica sobre mais um dos burocráticos diplomas do funcionalismo. À porta, assoma meio gago, a cruzar as mãos com as palavras, desastradamente pesaroso por importunar as lazeirices do senhor sub-director:
- Era o papel dos concursos para metermos nas máquinas, que a «ordem de serviço» está quase impressa – diz o Manuel da Silva, empregado da tipografia privativa.
- Olhe... espere. Ou vá-se embora, que não vi o assunto ainda.
Sobre a secretária as decisões do concurso teimam em desmenti-lo:
- Vá-se embora!
O Manuel da Silva, a dobrar o pescoço, afasta os olhos da mesa e retira-se.
Há em toda a tipografia uma enervação provocada pelas demoras do sub-chefe. O trabalho não avança, e a ordem tem de sair. Não haverá quem perceba que os atrasos podem vir dos senhores chefes. O pior não está nessa compreensão, mas na certeza, quase matemática, de que a repreensão registada cairá sobre o pessoal inferior. E nenhum deles se atreverá a culpar os chefes.
A vida dos operários e dos subalternos esfola. Às vezes, nas horas de trabalho, cruzam os braços e lêem nos anúncios a secção das «ofertas e procuras» e sobretudo a dos «empréstimos sobre penhores». Trabalham em horas extraordinárias porque tudo lhes vem tarde, e tem de sair normalissimamente a tempo. E sai, apesar da tesouraria jogar o slogan de que «não há verba». Fica-lhes a festa a dez e doze horas de serviço só parcialmente remuneradas. O tempo, por seu lado, faz hábitos, e ilude organização racional do trabalho. Em determinados dias, os operários por impulso mais do que por lógica, reprovam entre eles, a meia-voz, aquelas arbitrariedades.
Hoje, o senhor M. da Silva não convence os companheiros da existência de um motivo justo dos atrasos. Faltam-lhe argumentos.
- Estive no gabinete do chefe...
Levanta a sobrancelha esquerda, tosse e crê na sua importância, repetindo em pensamento: «estive no gabinete do chefe»!!! Depois continua, mentindo um pouco também:
- ... mostrou-me um montão de assuntos urgentes e prometeu atender-nos em primeiro lugar.
Quando o Manuel da Silva pensa acrescentar adjectivos elogiosos ao nome do sub-director encontra olhos de gargalhada a cortarem-lhe a voz. Como não é redondamente bruto, pega no jornal e espera que do silêncio que então fica, nasça outro motivo de conversa.
O senhor Meireles noutra sala ao lado, levanta-se bruscamente e abre a janela. Primeiro andar, nas traseiras da repartição donde se vê a avenida de Sá da Bandeira e todo o seu movimento. Na rua, compõe o macadame uma dúzia de negros com regadores de alcatrão e troncos semi-nus em suas camisas rotas. Talvez alguns, a maioria, se sinta feliz nessa insuficiência de vida: trabalho de besta e arroz. A tragédia do homem só nasce da consciência de se bastar e querer ir além, de ver na felicidade o começo da infelicidade. Os negros porém, deviam ser todos dóceis, activos como máquinas, e com a inteligência necessária apenas à satisfação dos desejos dos brancos. Os que assim não são persistem só para complicar as coisas. Imaginem que por causa do raio de um destes, está o serviço pendente. Não se devia interpretar tanto à letra o Humanismo nas colónias. A própria existência das colónias, contradiz por si o Humanismo.
Da sala ao lado, entrou o aspirante Ferreira com requerimentos a despacho. O Meireles recebe o novo fardo.
Senta-se à mesa. Entretanto o cartão de visita do Senhor Arcebispo chama-o para fora da papelada trazida pelo aspirante. Ainda na véspera o senhor D. José viera falar-lhe no caso do concurso. «Não venho, propriamente meter-lhe uma cunha; isso, em quaisquer circunstâncias repugnaria à minha dignidade de homem e de representante do Justo». Vinha, com a razão nas mãos, mostrar-lhe a necessidade de defender o património do colonizador. O caso era simples: o negro António Neves ascendeu a uma posição grada no funcionalismo Qualquer injustiça sobre ele podia habilmente explorar-se para tentar agitar negros. As perseguições racistas acentuavam-se; a habilidade dos melindrados e a persistência de injustiças causariam na massa negra, não a compreensão clara da pata opressora, mas um mal-estar colectivo, uma vontade de dizer «Não!», a pulmões cheios, de escoicinhar sem saber como, nem em quem. Se os negros civilizados fossem contentados no mínimo necessário, a evolução negra até à compreensão da verdade seria muito morosa. Os próprios beneficiados, egoisticamente, trairiam o bem-estar de milhões de irmãos. A questão estava toda nisto; não bulir com os negros civilizados, por uma questão de conveniência não muito remota.
Ao despedir-se, o Arcebispo voltou a insistir:
«... Lembre-se de que as autoridades superiores enfileiram a meu lado nesse pensar. E olhe que não venho armar em defensor dos negros. É que é de toda a conveniência que proceda consoante...»
A mão beijada, o Arcebispo julgou triunfante a sua opinião, e retirou-se.
O Meireles largou o cartão de visita e voltou à janela. Todas as palavras do padre martelando-lhe a memória, lhe pareceram ilógicas. Como nomear um negro, que os futuros subordinados brancos não aceitarão como superior? O Neves é o segundo classificado e já vítima de ratifícios racistas do júri. Há dez vagas de preenchimento urgente. Escasseiam meios de eliminar o concorrente. A arbitrariedade não avançará agora nem um centímetro sem escândalo.
«Se fosses como teus irmãos, mero carregador de cais, ou desentupidor de fossas!... não levantarias novos problemas a ti e a nós. A vida seria suavemente menos alcantilada. Seria feliz porque eras do teu mundo, e te bastavas nele.
O Meireles dá dois murros no parapeito como que para mudar o ângulo de visão dos seus pensamentos. A verdade é que o caso já não é de lamentos. Tem a naturalidade fria das leis físicas. O subdirector esgravata as unhas da mão esquerda, com a unha pontuda do mínimo da direita. Uma sujidade escura cai perdida...
O Neves tinha bom comportamento como cidadão e como funcionário. Na Administração Civil e segurança pública de nada serviria essa comportamento. Bastava a cor, como cartão de rejeição. Nas outras repartições... enxameavam aqueles bicos de obras. Negros a quererem ir além do que uma condescendente colonização permitia.
O Meireles olha com ódio os trabalhadores da rua. «São todos o mesmo!» Volta a sentar-se e, inseguro, tine a campainha, a que o servente preto Zafania acode. A farda caqui, os olhos abertos, à espera.
- Costuma pedir-se licença, meu cão! Rua!!! Entra outra vez e com mais respeito.
O Zafania aparvalha-se.
O subdirector precisava falar aos componentes do júri. A ordem de classificação dos concursos castigava-lhe o cérebro. Nevralgia! Lembra as últimas recomendações do Arcebispo... «olhe que não venho armar em defensor dos negros. Mas é de toda a conveniência que proceda consoante...» Os negros das estradas, os serventes, os moleques de casa, o Neves, baralham-se-lhe num xadrez de psicologia e aspectos físicos diferentes, que ele mantém unidos debaixo da raça.
NEGROS!...


O Manuel da Silva e companheiros, lá apresentaram a ordem de serviço no dia próprio. Tinha ao alto o nome da repartição logo abaixo de «Serviço da República». Vinham nomeações para capatazes, transferências de praticantes de escritório e novas formas de admissão a concursos públicos enviadas pelas autoridades superiores da Administração Colonial. E acabava nesta frase habitual: «A Bem da Nação».
Dizia-se que o Subdirector nada decidira sobre os concursos de primeiros oficiais, aguardando a vinda de férias do Director para dali a um mês.


Algum tempo depois, numa Ordem de Serviço, o Subdirector era castigado por incúria na resolução de problemas prementes da repartição.


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