domingo, maio 30, 2004

Ruy Guerra

A MORTE DO VELHO GUERREIRO SWAZI

Os meus pais tinham uma casa no meio das montanhas, na Namaácha, fronteira com a Swazilândia.
Eu era um garoto de uns seis anos quando começou a ser construída, e até hoje guardo a lembrança da aventura que foi ajudar meu pai a marcar com barbante, na terra vermelha, os limites das fundações.
Nessa casa de pedra à vista iria passar, ao longo da minha infância, grande parte das férias familiares.
Por isso, quando em 1975 fui a Moçambique para assistir aos festejos da Independência, foi com um sentimento que não procuro descrever, que subi a estrada da Namaácha a setenta e poucos quilómetros da capital.
Quando vi a velha casa de pedra com sua varanda, me espantei que ainda estivesse lá, como se os 25 anos de ausência fossem uma eternidade de terremotos. Mas passada a água nos olhos, tive um sorriso que contado pode parecer descabido ao ver as mudas de macieiras, cerejeiras, amendoeiras, que o meu pai mandara buscar de navio em Portugal e plantara com serapilheiras e fé. Continuavam lá, atrofiadas árvores inadaptadas, miúdas, mesquinhas, mirradas, iguais a quando eu as deixara pela última vez, e já então motivo de chacota da minha parte diante da teimosa esperança de meu pai de que ainda vingariam no frio das montanhas e dariam frutos nostálgicos da Metrópole, colhidos no pé, em terra africana.
Não vou falar do que é encontrar um velho livro extraviado de Tarzan, da Terramarear, com minha assinatura de jovem adolescente, ou reavivar de chofre inexplicáveis esquecimentos, que batem com a violência de uma vertiginosa viagem na saudade. Lembro que lembrei dias e noites, caçadas e jogos, passeios na velha cascata que não visitei para não me surpreender de a encontrar igual a ela mesma, como se o tempo não tivesse passado e o vazio dos meus pais fosse uma absurda imagem de filho pródigo.
Depois olhei o alpendre-garagem rasgado pelo abandono, e mais além, a meio caminho do terreno invadido de capim, aquele outro vazio doloroso.
Caminhei até lá, pisei a erva bravia e tive a certeza que tinha sido ali, mais palmo menos palmo, que eu tinha ajudado com a alegria da minha inocência, a construir a palhota do velho guerreiro. Lembro que lembrei como o velho swazi me ensinou a colocar os paus no tecto cónico, como me ensinou a ciência das nós e das tranças de palha seca até a para mim imensa abóbada ficar pronta, pousada no solo, expectante.
Lembro que lembrei a excitação de jogar o barro nas paredes dia após dia, numa azáfama prazerosa que me fazia levantar ao romper do sol para me juntar ao velho swazi, que me esperava sorrindo, os bigodes ralos pendentes, os olhos puxados, capulana e torso nu, catana nos dedos grossos, mistura de negro e malaio. Lembro que lembrei quando chegou a hora de pedir ajuda e vieram da vizinhança músculos para ajudar a levantar o tecto à força de braço e canções, sobre as paredes da palhota, de porta pronta.
Lembro ainda que recordei depois, já numa nebulosa de nó na garganta, as inúmeras vezes em que saí para a caça com o velho guerreiro swazi, que me ensinava os caminhos do mato, os perigos da mamba, a leitura das sombras do macaco-cão, as águas de beber, as marcas a deixar, os rastros a esquecer. Lembro que recordei das comidas em volta do fogo dentro da palhota, os olhos picados pelo fumo, quando o velho guerreiro cantarolava canções que eu não entendia, como não entendia o seu linguajar swazi além de meia dúzia de palavras aprendidas entre nós como náufragos solitários. Porque o velho Lambo, guardião durante anos a fio da casa da Namaácha, jamais tentou um só som de português, não por desinteresse, mas suspeito por não lhe descobrir a utilidade.
E lembro agora, como lembrei muitas vezes durante muitos esquecimentos, o dia em que o meu pai se aproximou mansamente de mim na nossa residência de Lourenço Marques para dizer que o velho Lambo estava na cidade e queria se despedir.
Corri excitado, quando a minha alegria de abraçar o velho guerreiro foi cortada: não me deixaram aproximar mais que três passos.
O velho guerreiro swazi me sorriu, os bigodes ralos agora mais pendentes, um rosto escalavrado por uma inesperada magreza, uma desconhecida camisa de quadros dançando no corpo só de ossos. De igual apenas a mesma capulana colorida.
Me falou com voz rouca algumas frases curtas e sacudidas, num swazi que escapa às minhas poucas palavras do idioma. Mas entendi o olhar febril, o sorriso crispado, e entendi a sua ternura, quando o meu pai, os olhos húmidos, explicou tristemente:

Não podes aproximar-te. O Lambo está muito doente. Trouxe-o para tratamento mas ele agora quer voltar para a Namaácha. Pediu para te dizer adeus.
Daquela distância, que já era a distância da morte, o velho guerreiro me fez um derradeiro aceno e entrou bruscamente na caminhonete, sem mais um olhar.
Lambo morreu de tuberculose poucos dias depois, e a sua palhota foi queimada.
Durante muito tempo não tive coragem de voltar à casa de pedra da Namaácha.

Dizem que não se morre enquanto se é lembrado.
Se assim for, o velho guerreiro swazi continuará vivo até ao fim de mim mesmo.


[82]
Bibliografia essencial: Ruy Guerra, 20 Navios, Caminho

quinta-feira, maio 27, 2004

O primeiro poema apareceu há precisamente um ano.
Desde então, compareceram à sombra dos palmares:

De Longe Esta Ilha Parece Pequena (Canção Popular)
Alberto de Lacerda - Regresso
Alberto de Lacerda - L'Isle Joyeuse
Alberto de Lacerda - Ponta da Ilha
Campos Oliveira - O Pescador de Moçambique
Eugénio Lisboa - No Tempo em Que, Fernando
Eugénio Lisboa - Origem
Fonseca Amaral - L'Aprés-Midi D'un Gala-Gala
Fonseca Amaral - Penitência
Fonseca Amaral - Passagem de Nível
Fonseca Amaral - Para Um Barco Que Apodrece a Meio da Baía
Glória de Santana - Dia Africano
Grabato Dias - As Quybyrycas (canto nove - fragmento)
Grabato Dias - Laurentina Cesariniana 2
João Dias - Gôdido
João Dias - Indivíduo Preto
José Craveirinha - Poema de JC Num Dia em que Estava Todo de Negro
José Craveirinha - Aforismo
José Craveirinha - Esperança
José Craveirinha - Primavera
José Craveirinha - Moçambiquicida
José Craveirinha - Menus
José Craveirinha - Quero Ser Tambor
José Craveirinha - O Bule e O Blue
José Craveirinha - Xigubo
José Craveirinha - Grito Negro
José Craveirinha - África
José Craveirinha - Boato do Velho Ussene
José Craveirinha - Mina Antipessoal
José Craveirinha - Gente a Trouxe-Mouxe
José Craveirinha - Trouxa de 8 Couves
Luis Bernardo Honwana - As Mãos dos Pretos
Luis Carlos Patraquim - Muhípiti
Mia Couto - O Primeiro Astronauta
Mia Couto - Poema Mestiço
Mia Couto - (Escre)ver-me
Mutimati Barnabé João - Eu, O Povo
Nelson Saúte - Mulher de M´siro
Noémia de Sousa - Poema Para Rui de Noronha
Noémia de Sousa - Poema da Infância Distante
Noémia de Sousa - A Billie Holiday, Cantora
Noémia de Sousa - A Mulher Que Ri à Vida e à Morte
Noémia de Sousa - Porquê
Noémia de Sousa - Justificação
Noémia de Sousa - Nossa Voz
Noémia de Sousa - Moça das Docas
Noémia de Sousa - Bayete
Nuno Bermudes - Natal em África
Orlando Mendes - Rigor
Orlando Mendes - Instante Para Depois
Rui de Noronha - Surge et Ambula
Rui de Noronha - À Tarde
Rui de Noronha - Grito de Alma
Rui Knopfli - Então, Rui?
Rui Knopfli - Naturalidade
Rui Knopfli - Ilha Dourada
Rui Knopfli - O Povo da China Visto do Alto-Maé
Rui Knopfli - Na Morte de Reinaldo Ferreira
Rui Knopfli - Proposição
Rui Knopfli - Dana
Rui Knopfli - Carta para Um Amor
Rui Knopfli - Ponta da Ilha
Rui Knopfli - No Crematório Baneane
Rui Knopfli - Baldio
Rui Knopfli - Kaap Die Goeie Hoop
Rui Knopfli - O Campo
Rui Knopfli - Retorno
Rui Knopfli - Nenhum Monumento
Rui Knopfli - II. Pátria
Rui Knopfli - Mesquita Grande
Rui Knopfli - Dawn
Rui Knopfli - Hidrografia
Rui Knopfli - Aeroporto
Rui Knopfli - Inventário
Rui Knopfli - Mangas Verdes com Sal
Sebastião Alba - Cidade Baixa
Sebastião Alba - Reinaldo Ferreira
Sebastião Alba - Mais Do Que Do Outro
Sebastião Alba - Ícaro
Suleiman Cassamo - O Rascunho
Virgílio de Lemos - Ouamisi

domingo, maio 23, 2004

Fonseca Amaral

PARA UM BARCO QUE APODRECE A MEIO DA BAÍA

Ship of the Body, Ship of the
Soul voyaging, voyaging, voyaging.

- Walt Whitman

Velho Liberal, zarcão e ferrugem ao lume de água,
cansado desta costa, tua conhecida como a palma do convés,
encostaste-te a um canto da Baía e ancoraste no sono.
Já não te desperta a malta acenando com o palhinhas
às belas marrusses das vilas costeiras,
nem o tempo em que, a escarrar e a tossir,
(Estibordo, bombordo, tantas braças, toda a estaléca àvante!)
à força de pulso, à chicotada de hélice,
lá ias, mastreado de positivismo e lírica retórica,
varando a Costa, corpo de mulher cingido de água.

Mundo familiar aquele: Funcionários, machambeiros,
magaíças, a casada por procuração,
a alacre gente ribeirinha de Inhambane e Mossuril,
a fumar com o lume dentro da boca,
e um poeta que trazia, de contrabando,
três mancheias de bruma e um rouxinol.
Quantos não fecharam já o definitivo e secreto périplo,
desembarcando lá onde não se exigem
malas, mantas, trouxas, esteiras nem cartas de chamada?

Para ti, meu navio de cabelos brancos, velho colono do mar,
vieram o cansaço, o caruncho a roer-te o casco e as articulações,
o catarro roubando-te galhardia aos silvos
que faziam saltar, bater as palmas
às gentes daqui até à Mocímboa.

Foste amarra de emoção passada entre mar e terra,
mas cansaste-te, meu velho.
Olha, arrasta-te, reumático, ao Cemitério dos Navios
e, «com vossa licença, cidadãos»,
ao lado dos mais aderna um tanto,
ajeita a chaminé debaixo da cabeça,
cerra as pálpebras das vigias,
deixa-te morrer, tristemente morrer,
com esse teu nome a evocar descabelados conluios carbonários,
muito medo para o ganho e imensos lunares de suor.

Prometo-te que nós,
deste cais onde viscoso nembo a viagem nos tolhe,
macilentos, impaludados, te acenaremos, todos os dias,
com um lenço e um sorriso de irónica simpatia.

Farewell my old ship! A água te seja leve.


[81]

quarta-feira, maio 19, 2004

Rui Knopfli

MANGAS VERDES COM SAL

Mangas verdes com sal
sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido,
na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo,
à boca ardida,
à crista do tempo,
ao meio da vida.


[80]

terça-feira, maio 11, 2004

Fonseca Amaral

PASSAGEM DE NÍVEL

Para o R.K.

Ali a nossa Pátria mal nascia.
A água salgada, o lodo, a maresia
eram o cuspo, o barro, o olor
com que um Deus jovem e faceto,
ao mesmo tempo urbano, pastoril e marítimo
(Seria branco ou preto?)
nos moldava de todas as cores:
pila ao léu
a verter para o céu
ou prós comboios,
a provocar os mabunos,
lá do Godine,
das entranhas reluzentes.

Shitimela shi ku psá...
Mas a ira deles, tão loiros,
seria só da nossa adâmica nudez
de machinhos inocentes?
A praia do Nhike-Panze
foi um ar que lhe deu...
Joãozinho, você não venha agora
com as suas manias,
que eu bem conheço,
evocar o que não é jamais.

O aterro está muito bem assim.
Cinco chagas!,
Você pode ficar certo duma coisa:
não só lá enterrámos a infância
mais a roupa (tão leve!)
que a envolvia.


[79]
Bibliografia essencial: João Fonseca Amaral, Poemas, INCM

segunda-feira, maio 03, 2004

Suleiman Cassamo

O RASCUNHO

Corri atrás do ardina. É sempre com o coração nas mãos que, pela manhã, corro atrás do ardina. A escrita de um texto não acaba. Vai-se da primeira à última versão, corta-se-lhe as rebarbas, afina-se-lhe a pauta. Mas há sempre uma excrescência, um incongruência que se nos escapa.
A isto, junte-se as gralhas, a má composição, o carácter desfalecido no vigos da página, frases amassadas tipo arroz mal cozido.
É isto que faz a aflição do escriba. Ver como ficou, na face da página, o rosto do seu texto. O escritor de verdade não procura o estrondo do seu nome, mas a certeza de ir descansado, o jornal debaixo do braço, e deitar-se sobre a página aberta, a urdir a próxima aventura.
Nessa manhã, não. Não tive sossego. Ao desfraldar o matutino, no lugar da depurada, enxuta e desgralhada crónica, choco, vejam só, com o rascunho. Sim, o rascunho. Que após fixar o esqueleto do texto, havia amarrotado para a lata do lixo.
Corri até ao jornal: Redacção, Composição, Maquetização, Impressão e Revisão. Nada. Não só não sabiam explicar como também não haviam notado.
Exigi o texto de partida. E, agora que não há mais chumbos de linotipia, a disquete. Essas e demais provas eram fiéis ao original. Posta de lado também a possibilidade de alguém ter recuperado o rascunho, tão esmigalhado o deixara.
Só restava uma hipótese: farto de ser ignorado, o rascunho passara, discreto e rebelde, impregnado debaixo da substância visível do texto em evolução. Só no último momento empurrou a forma eleita, e caminhou para a meta.
Que fazer? Tivesse posses, comprava toda a tiragem e mandava destruir. Mas o matutino já estava na rua, mais esse meu texto cruelmente cru, se alastrando parece queimada.
Fiquei doente, recolhido. Que volte face, a do rascunho. Destruído como se fosse prova de vergonha, agora me esmagava!
Naquela mesma tarde, as cartas começaram a assediar a minha porta, a sitiar-me. Não precisava abrir: me acusariam de abuso de confiança, de abuso de liberdade de expressão, um rol de coisas, enfim, de estender no jornal as minhas cuecas.
Engano meu. «Nunca foste tão sincero contigo próprio», reagiam os leitores, «o mesmo que dizer, connosco.»
«Não imaginamos», lia-se num abaixo-assinado, «quanto se perdeu. Por autocensura de motivação política, moral, ou religiosa. Ou por egoísmo apenas. Aquilo que você cortava no fim. Não imagina quanto se perdeu nisso.»
Afinal, a dinâmica e a fluidez dos textos anteriores eram em detrimento da ira, do sabor agreste do esboço, da tinta do coração.
Um padre comentava: «O rascunho marca o primeiro impulso, a verdade não-manipulada, o que, muitas vezes, o coração diz e a boca cala. Se o Homem falasse rascunho não havia necessidade de confissão.»
Ninguém o dizia de caras, mas a insinuação era clara: rasgue os textos decantados, publique os rascunhos. Isto é, um fórmula antifórmula, uma escrita no sentido anti-horário.
Desnecessária a sugestão. Ao fim e ao cabo, pretendendo escrever direito, se escreve torto. Mesmo este texto, na sua aparência depurada, tal como o Homem dos nossos dias à luz do projecto divino, não passa de um rascunho.


[78]
Bibliografia essencial: Suleiman Cassamo, Amor de Baobá - Crónicas, Caminho