domingo, outubro 24, 2010

José Eduardo Agualusa

MILAGRÁRIO PESSOAL (excerto)

O grupo organizou-se como um coral, as mulheres à direita e os homens à esquerda. Dois dos homens, à frente, carregavam compridos batuques artesanais, feitos de pele de antílope bem esticada. Outro trazia uma flauta de bisel. Foi este quem deu início à cerimónia, soprando uma melodia aérea, levemente árabe, à qual, ao fim de dois minutos, se juntaram os batuques, primeiro num sussurro, depois cada vez mais rápidos, num galope urgente, e então um dos homens irrompeu a cantar, numa poderosa voz de tenor, arrastando o coral. Levei alguns minutos para compreender, em sobressalto, que cantavam em português, ou melhor, num idioma em ruínas que, séculos antes, havia sido o nosso. Levei bastante mais tempo, quatro ou cinco dias, para compreender que aquilo que eles cantavam eram fragmentos de um diário - o testemunho de um marinheiro que Vasco da Gama deixou em Melinde, um lançado, e que por ali ficou fazendo filhos. Ao que parece, muitos filhos.
Julgo que os descendentes de Diogo Mendes decidiram transformar em canções o diário do avô português, transmitindo-o depois, nesse formato, de geração em geração, como forma de melhor o preservarem. Pouco a pouco, porém, à medida que se iam esquecendo do sentido das palavras, passaram a atribuir-lhes propriedades mágicas.


[328]

quarta-feira, agosto 11, 2010

Luís Carlos Patraquim

A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 3)

Todas as cidades têm as suas entranhas e estranhezas. Apesar de Maputo não ter muito de labiríntico, e digo isto se exceptuarmos os chamados subúrbios, anverso do cimento, não se lhe conhecem túneis nem grutas como em Nápoles, ou Roma, para só citar dois nomes.

Desenhada a régua e esquadro, aqui um quase boulevard que sai da Praça junto ao porto e sobe, em suave inclinação, até ao Conselho Executivo, a baixa e a alta espraiam-se, regra geral, em quarteirões que as paralelas e as perpendiculares demarcam. Uma e outra sinuosidade, alguns gavetos, pátios interiores, numa arquitectura monótona. Há excepções, a que é preciso estar atento. Outras impõem-se. Outras, ainda, ruíram.


[327]

quinta-feira, julho 22, 2010

Grabato Dias

AMOR. TE. TI, TIGO, A MORTE. AMO-TE

Amor. Te. Ti, tigo. A morte. Amo-te
sem R, sem risco ao meio da morte.
Quero-te assim, querente, quente e forte
ode que a circunstância obriga a mote.

Quatorze versos no papel e dou-te
exangue e medido ramo. O corte
já deixou de sangrar. Pinhos do norte!
Que ricas tábuas de caixão, pra bote!

No mundo em pedaços repartida
ficou-me a mim e ao luis vaz a vida,
galinha gorda rebolante ao espeto.

Me, mi, Mimi, migo... Ó amiga, as migas
ainda são um bom prato, e até com ligas
de duquesa se faz tanto soneto.


[326]

domingo, julho 18, 2010

Luís Carlos Patraquim

A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 2)

A verdade é que sucediam episódios estranhos na cidade. Fazer machamba na banheira, arrancar o parquet para lenha, confusionar os elevadores até eles ficarem teimosos e pararem, isso até que se explicava com as adaptações à urbe. Mas as cabeças que começavam a aparecer sozinhas ensombravam os sonhos de Zefanias. Já não bastava os ataques dos boers, as lojas do povo só com papel higiénico quando até a comida era uma dificuldade, para esses xipókwés desesconderem-se na sua condição de limbo e apresentarem-se em forma de cabeças. Cabeça é para pensar e estar no corpo, as duas partes não hão-de ficar separadas.


[325]

terça-feira, julho 13, 2010

Luís Carlos Patraquim

A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 1)

Morava no que fora um chalet, na Avenida 24 de Julho, quando os tramways subiam a D. Carlos, depois Manuel de Arriaga, agora Karl Marx, dobrando a Central Eléctrica e subindo, chiando, extenuando-se.

"A 24 de Julho é uma avenida coerente".

Verdade que a frondosa via, que atravessa a cidade a meio, na sua parte alta, desenrolando-se desde o bairro da Polana até ao Alto Mahé, mantivera a mesma designação. Nome desde o antigamente por causa da sentença do Marechal Mac-Mahon sobre os territórios da Catembe, defronte da baía, que Sua Majestade britânica reivindicava à dita soberania portuguesa e que assim se manteve por ter sido essa a data das famosas nacionalizações, loguinho mesmo a seguir à independência. Zefanias, que não era dado a sinuosidades semânticas, classificava como mesmura essa teimosia toponímica, alheio a manifestas incoincidências políticas. Nunca lhe consegui uma explicação para o termo.

O dito chalet, verdade seja, tinha mais de evocação do que de estatuto, relíquia de uma certa belle époque cujos perfumes cruzaram os oceanos, dobraram o cabo e aportaram na cidade. Aqui uma frontaria em arcos, lavrada, uns muros à inglesa, colunatas modestas, um e outro hotel junto ao porto, o can-can de algumas vaporosas francesas. Mas a cidade era na baixa. No altos, que Mouzinho de Albuquerque ainda subira a cavalo poucos anos antes com medo das emboscadas, a zona fresca propiciava as casas avarandadas onde uma burguesia sempre apavorada com a biliosa mas a prosperar podia dizer que pegava na lancheira e ia para o campo. Poucos sobravam, quase nenhuns, diga-se a verdade, ora substituídos ou acrescentados, ora vergastados pelo tempo.


[324]

domingo, julho 04, 2010

Luís Carlos Patraquim

REINALDO FERREIRA

Cores do poema
alado
Garupa azul
Quando cais
Gorjão

[323]

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Eduardo White

ASSUME O AMOR COMO UM OFÍCIO

Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido.

Deixa nele crescer o sol
até tarde,

deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.


[322]