segunda-feira, janeiro 28, 2008

Helder Macedo

PARTES DE ÁFRICA (excerto/5)

Havia uma altura do ano em que as ruas de Lourenço Marques estavam cheias de espadas. Não eram bem espadas, a forma era mais de alfanges, e eram de facto umas longas vagens que caíam das acácias permitindo duelos que nem o Errol Flynn nas matinés do Scala. As mais longas chegavam a ter meio metro, que para um braço de doze anos era o tamanho ideal. As sementes dentro das carapaças acastanhadas chocalhavam marcialmente a cada golpe, os duelos terminavam não quando um matava o outro, porque ressuscitava-se sempre, mas quando alguém pedia tréguas, o que seria uma vergonha. Ou então quando uma das espadas se desintegrava. Era por isso conveniente escolher sempre uma espada ainda firme mas já razoavelmente seca (que além do mais tinha a vantagem de as sementes também rufarem tambores de guerra) para, facilmente desintegrada com honra, se poder ir ter com os amigos do futebol no campo do Harmonia. O Coluna aparecia às vezes no fim do calor da tarde e deixava-se ficar alguns minutos, dando conselhos: «nunca chutes a bola com a biqueira, o pé em ângulo controla melhor a direcção da bola.» Já jogava no Desportivo e era ouvido com metafísico respeito. O Costa Pereira, mais populista, de vez em quando acedia a jogar connosco, defendendo a baliza da equipa da equipa que estivesse a perder. E um dia quase lhe meti um golo. Momento inesquecível: de pé em ângulo.


[298]

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Eduardo White

FILHO QUE FOSSE

Filho que fosse
a metade justa
da oferenda


[297]

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Helder Macedo

PARTES DE ÁFRICA (excerto/4)

«A casa era uma construção apalaçada do tempo das capitanias, versão residencial do quadrado de Marracuene num amplo cubo com quatro torres atarracadas, varandas ligando-as em perfeita simetria ao nível do primeiro andar, escadaria para um jardim com caramanchão, um embondeiro, palmeiras, um rego de água ao lado do caniçal. Em frente ao jardim abria-se a ideia platónica de uma praça, prefigurada por uma extensão abaulada de terra batida ainda sem outras casas em volta a justificá-la, excepto, do lado oposto, a sede da administração. Mas no centro da praça, e só por isso era praça e tinha centro, erguia-se um poste de bandeira. Os sipais, de farda caqui e cofio vermelho, apresentavam armas com as kropachets, já há muito sem a pólvora do tempo da revolta dos maganjas, enquanto um deles tocava o clarim e outro içava ou arreava a bandeira no rápido alvorecer da madrugada ou no intenso clarão roxo que precedia a noite repentina. Depois marchavam, em formação, no compasso surdo das solas grossas dos pés descalços, até destroçarem junto a um renque de árvores, ao longe. O clarim assinalando o fim do dia imperial era também o momento em que os morcegos, pendurados de cabeça para baixo na árvore fantasma ao fundo do quintal desde o toque da alvorada, iam começar o seu depredatório dia libertário na mesma noite sem crepúsculo de que os pássaros se recolhiam alvoraçados, com exagerada estridência. E também os grupos seminus de homens aflitos e mulheres com crianças às costas ou aos longos peitos ressequidos, que haviam acampado desde a manhã na sombra pegajosa de insectos em volta da administração, aviadas as últimas demandas começavam de repente a falar mais alto antes de regressarem às aldeias que se confundiam na distância com a terra e o caniço de que eram construídas. Um dia o meu irmão construiu sobre o rego de água uma ponte de terra e caniço que não caiu quando depois passou sobre ela de bicicleta. Foi um acontecimento de pura magia. E numa noite muito quente em que me pareceu ouvir vozes ao fundo da casa e um súbito estrondo, sonhei que havia um leão no quintal. Quando acordei de manhã disseram-me que sim, que era uma leoa. Não me deixaram ir vê-la mas havia para mim um leão pequenino, uma criaturinha quase ainda do tamanho dum gato que ao fim de uma semana em que se pensava que iria sobreviver, já se divertia a fazer esperas ao meu cão, que era tão grande (se é o mesmo da fotografia) que pouco tempo antes eu ainda cavalgava.»


[296]

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Helder Macedo

PARTES DE ÁFRICA (excerto/3)

Era magríssimo, tinha sido actor do mudo nos anos 20, emigrara para Moçambique onde arranjou um camião arraçado de caravana blindada, e precedia as exibições com um sapateado de sapatos compridos, à palhaço, acompanhado por uma grafonola de campânula. Ia aonde o chamassem, às vezes ia sem o terem chamado, e era sempre uma grande excitação. Devo-lhe o meu primeiro filme, O Capitão das Nuvens. Quis logo ser aviador: pus uma cadeira em frente de outra com o cão de copiloto na de trás e metralhámos os alemães.


[295]