quarta-feira, fevereiro 25, 2004

José Craveirinha

GENTE A TROUXE-MOUXE

Gente a trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheire a bafo
de bazucadas.

Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
gusados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.

Gente dessedentando martírios
nos charcos
se chover.
...
ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.

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sábado, fevereiro 21, 2004

Campos Oliveira

O PESCADOR DE MOÇAMBIQUE

- Eu nasci em Moçambique
de pais humildes provim,
a côr negra que eles tinham
é a côr que tenho em mim:
sou pescador desde a infância,
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei.

Antes que o sol se levante
eis que junto à praia estou;
se ao repoizo marco as horas
à preguiça não as dou;
em frágil casquinha leve,
sempre longe do meu lar,
ando entregue ao vento e às ondas
sem a morte receiar.

Ter continuo a vida em risco
é triste coisa – sei que é!
mas do mar não teme as iras
quem em Deus depõe a fé;
é pequena a recompensa
da vida custosa assim;
mas se a fome não me mata
que me importa o resto a mim?

Vou da Cabaceira às praias,
atravesso Mussuril,
traje embora o céu d’escuro,
ou todo seja d’anil;
de Lumbo visito as águas
e assim vou até Sancal,
chegou depois ao mar-alto
sopre o norte ou ruja o sul.

Só à noite casca ataco
para o corpo repousar,
e ao pé da mulher qie estimo
ledas horas ir passar:
da mulher doces carícias
também quer o pescador,
pois d’esta vida os pezares
faz quasi esquecer o amor!

Sou pescador desda a infância
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei;
e em quanto tiver os braços,
a pá e a casquinha ali,
viverei sempre contente
neste lidar que escolhi.


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sexta-feira, fevereiro 13, 2004

José Craveirinha

MINA ANTIPESSOAL

O avançado Jossias “Ponta Esquerda”
terror dos guarda-redes
agora já possui três pés
mas não chuta com nenhum.

Foi uma mina antipessoal
que o pé canhoto não driblou
num carreiro do mato.

Agora uma perna da calça oscila ao vento
enquanto duas pernas suplentes
são próteses de madeira.

As guerras dos homens
desenvolvem o desporto
com próteses para o povo.

Herói de golos de antologia
Jossias, o “Ponta Esquerda” de Fura-Rede
já não tem admiradores.

Palmas e autógrafos quando passa?
Do seu clube nem nada
e autógrafos só no hospital
ou quando o neo-realismo
do pé esquerdo de voz ausente
dá óptima compensação
com autógrafos no hospital
quando preenche e assina:
Jossias ex-Ponta Esquerda
Profissão: indigente.
Clube: Mina Antipessoal.


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quarta-feira, fevereiro 11, 2004

Mia Couto

(ESCRE)VER-ME

nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar


[61]

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Noémia de Sousa

JUSTIFICAÇÃO

Se o nosso canto negro é simultaneamente
baço e ameaçador como o mar
em noites de calmaria;
se a nossa voz é rouca e agreste
só se abrindo em gritos de rebeldia;
se é ao mesmo tempo amarga e doce a nossa poesia
como suco de nhantsumas silvestres;
se é encovado e profundo o nosso olhar
rasgando-se impávido à luz do dia;
se são disformes e gretados nossos pés espalmados
de trilhar caminhos ingratos;
se a nossa alma se fechou para a alegria
e só dá hospedagem ao ódio e à revolta
- não nos culpes a nós, irmão vindo das ruas da cidade.

Que entre nós e o sol se interpuseram
grades feias de escravidão,
grades negras e cerradas a impedir-nos de tostar
de verdadeira felicidade,


Mas ai, irmão vindo das ruas da cidade!
Nosso firme sentido de justiça, nossa indómita vontade a nascer
nossa miséria comum vestida de sacas rotas e imundas,
nossa própria escravidão
serão o calor e o maçarico que fundirão
para sempre as grossas colunas que nos zebravam a vida inteira
e lhe arrancaram todo o jeito doce e inexprimível de vida.


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