tag:blogger.com,1999:blog-54307182024-03-21T13:02:28.479+00:00À Sombra dos PalmaresNão sou daqui das praias da tristeza
Do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez minha beleza
E colocai-a à sombra dos palmares
- Natália CorreiaUnknownnoreply@blogger.comBlogger391125tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-77564904119419403142017-10-20T17:42:00.001+01:002017-10-20T17:42:27.140+01:00<div class="MsoNormal">
<b>Rui Knopfli</b></div>
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<br /></div>
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JUSTERINI & BROOKS<o:p></o:p></div>
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<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este punhal de veludo,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
esta fria estalactite,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
esta cicuta tão lenta<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
e que tão profundamente<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
fere. Esta lâmina<o:p></o:p></div>
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<br /></div>
<div class="MsoNormal">
líquida, doirada,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
este filtro parecido ao sol,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
este rarefeito odor simultâneo<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
ao fumo, à água, à pedra.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
Este adormecer antes do sono<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
só preâmbulo da vigília,<o:p></o:p></div>
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que é o gélido acordar<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
da imaginação para<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
as fronteiras dormentes<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
do horizonte protelado.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este trajecto subterrâneo e húmido<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
pelos túneis do infortúnio,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
que é o adiar moroso <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
da morte, no prolongar<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
silencioso da vida,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
lágrimas da noite tornadas<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
pranto da madrugada,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
rumor débil e distante<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
brandindo já no sangue</div>
<div class="MsoNormal">
o endurecer das artérias.</div>
<div class="MsoNormal">
<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
[343]</div>
Unknownnoreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-15949486172681965902017-10-19T12:40:00.001+01:002017-10-19T12:40:15.391+01:00<b>Rui Knopfli</b><br />
<br />
FIM DE TARDE NO CAFÉ<br />
<br />
Na tarde cor de azebre<br />
falávamos de coisas amargas.<br />
Ali, na mesa triste do café<br />
com moscas adejando<br />
sobre restos de açúcar<br />
e um copo de água<br />
morna de esquecida,<br />
falávamos da amargura das coisas,<br />
entre rostos graníticos e enxovalhados,<br />
entre estranhos e estranhos<br />
de estranhos e os que,<br />
nada tendo de estranhos,<br />
cuidam de cuidar<br />
o que se passa entre estranhos.<br />
Na tarde comprida e silenciosa<br />
tecíamos gestos inúteis<br />
e palavras entre dentes,<br />
mergulhados na paisagem geométrica<br />
do café. Do café tão cheio de gente<br />
e fumo e moscas e caras tristes<br />
e afinal tão profundamente,<br />
tão desesperadamente vazio.<br />
<br />
<br />
[342]<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-88913450769931274112017-03-10T09:11:00.001+00:002017-03-10T09:11:37.554+00:00<b>José Eduardo Agualusa</b><br />
<br />
A RAINHA GINGA E DE COMO OS AFRICANOS INVENTARAM O MUNDO (excerto)<br />
<br />
Cipriano defendia, como Valentino de Alexandria e outros panteístas, que tudo o que existe é Deus, incluindo cada homem e cada pedra, e que esse Deus que somos todos não é nem bom nem mau, ou é tudo isso sem distinção e alheadamente. Deus, disse-me Cipriano, é o que somos dormindo.<br />
- Todas as coisas têm o seu Deus - acrescentou. - Estamos cercados por Eles.<br />
Fiquei durante muito tempo pensando naquilo. Imaginando cada homem, cada ser, segregando o seu próprio Deus a partir de algum órgão escondido sob a pele da alma: o grave Deus das corujas. O hábil Deus das cobras. O Deus generoso dos quintais. O Deus traiçoeiro das adagas. O Deus zebrado das zebras. O Deus tagarela dos corvos e dos advogados. O humilde Deus dos pardais. O Deus insalubre dos pântanos. O Deus cabisbaixo dos canalhas. O pálido Deus das osgas. O rápido Deus das tormentas. O líquido Deus dos peixes. O áspero Deus dos sertões. O cálido Deus das praias. O ressequido Deus dos catos. O esquivo Deus dos jaguares. O Deus perfumado dos jasmins.<br />
<br />
<br />
[340]<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-27780811383322914632017-01-17T11:33:00.001+00:002017-01-17T11:37:39.433+00:00<b>Rui Nogar</b><br />
<br />
CICLO VITAL<br />
<br />
catanas de silêncio<br />
onde o crime<br />
da pretendida<br />
mutação biológica<br />
se esboçou mais<br />
que a premissa pretendida<br />
<br />
catanas de silêncio<br />
jugulando<br />
"as nossas melhores intenções<br />
nossas humaníssimas intenções"<br />
<div>
<br />
<br /></div>
<div>
[339]</div>
<div>
<br /></div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-59851215341146980772015-12-01T15:22:00.002+00:002015-12-01T15:22:51.008+00:00<b>Rui Knopfli</b><br />
<br />
INVERNAL<br />
<br />
Corre já um arrepio pela crista<br />
de Novembro. A imprevisível surpresa<br />
da luz de inverno é a sua agressiva<br />
doçura horizontal. Toma-se de frio<br />
<br />
o ombro esquerdo, a moinha persistente<br />
espreitando o coração cansado.<br />
Subo devagar o Mall e a luz<br />
fere-me os olhos frontalmente, filtrada,<br />
<br />
fina e branca, quase paralela ao solo,<br />
como em África nunca aconteceria.<br />
Perpendicular, fita-me de frente,<br />
rasante ao chão como se lhe pedisse<br />
<br />
que, por fim, me receba. Novembro,<br />
agora pressago, Novembro, agora<br />
sobre o ombro esquerdo, baixando,<br />
insidioso, sobre o lado dito fatal.<br />
<br />
<br />
[338] Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-80676100181512255842013-12-10T15:21:00.001+00:002013-12-10T15:21:47.846+00:00<b>Eugénio Lisboa</b><br />
<br />
A pátria é triste. Sofro. Estou calmo.<br />
Único honesto, entre deshonestos, clarividente,<br />
entre os cegos, a indignação há muito acalmo.<br />
Estou só. Sofro quando alguém sente.<br />
A honestidade – que solidão! A coragem cansa.<br />
Em breve, cadáver que a outros mortos fala,<br />
penso em Atenas, plena de alegria mansa,<br />
e no coração afogo palavras que o pudor cala.<br />
Estou cansado de prever o negro acontecer.<br />
Algo nasce. Algo morre. Com quem perde, estou.<br />
Honestidade é pátria de quem outra não sabe ter.<br />
Ao abismo das causas perdidas, quieto, vou.<br />
Melhor do que ocupar-me da minha pobre vida,<br />
agora que pos pássaros a cantar começam,<br />
na espada pego, com mão há pouco ferida<br />
– o vento rasgo. Percebo que meus pés tropeçam.<br />
<br />
<br />
[337] Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-74758170361397519522013-12-09T16:00:00.001+00:002013-12-09T16:00:37.371+00:00<b>Virgílio de Lemos</b><br />
<br />
CANTEMOS COM OS POETAS DE HAITI<br />
<br />
Cruzo os braços, Baby, e deixo-me ficar<br />Apreensivo e triste, meditando:<br />Tu, Baby, e os poetas nossos irmãos<br />Que escrevem cânticos no Haiti,<br />Sabem da vida incerta e vazia<br />Dos negros das ilhas e Américas<br />Dos que sofrem em África e Oceânia.<br /><br />Lembras-te daquele poema universal<br />Que falava de desumanidade?<br />Lembras-te dos segredos nas entrelinhas<br />Dos poemas verticais da Noémia de Sousa<br />Sempre em papel amarelo?<br /><br />Ah, se tudo fosse como nos sonhos belos<br />Cheio de romance e fantasia doce<br />Não haveria, Baby, o desespero<br />Nos cânticos dos poetas de Haiti<br />Nem segredos havia, fundos de angústia<br />Nos poemas verticais de desespero!<br /><br />Ah, nem tudo, Baby, nem mesmo eu<br />Faríamos da poesia um cântico triste<br />E só falaríamos de paz, amor,<br />E numa sede constante do azul do céu!<br />Mas se é dor o mundo que nos cerca,<br />Cantemos com os poetas de Haiti<br />Uma canção amarga que se não perca,<br />Cantemos em uníssono, porque lá ou aqui,<br />Os segredos são iguais, fundos de angústia,<br />E os poemas verticais, também de desespero. <br />
<br />
<br />
[336]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-69031782383366577992013-10-10T12:57:00.001+01:002013-10-10T12:57:21.827+01:00<b>José Craveirinha</b><br />
<br />
O MEU PREÇO<b> </b><br />
<b><br /></b>
Eu cidadão anónimo<br />
do País que mais amo sem dizer o nome<br />
se é para me dar de corpo e alma<br />
dou-me todo como daquela vez em Chaimite.<br />
Dou-me em troca de mil crianças felizes<br />
nenhum velho a pedir esmola<br />
uma escola em cada bairro<br />
salário justo nas oficinas<br />
filas de camiões carregados de hortaliças<br />
um exército de operários todos com serviço<br />
um tesouro de belas raparigas maravilhando as praias<br />
e ao vento da minha terra uma grande bandeira sem quinas.<br />
Se é para me dar<br />
dou-me de graça por conta disso.<br />
Mas se é para me vender<br />
vendo-me mas vendo-me muito caro.<br />
Ao preço incondicional<br />
de quanto me pode custar este poema.<br />
<br />
<br />
[335] Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-15588109999506628672013-08-27T10:54:00.000+01:002013-08-27T10:54:22.517+01:00<b>Mia Couto</b><br />
<br />
JESUSALÉM (excerto)<br />
<br />
Minha vocação é o silêncio. Foi meu
pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para
apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há
um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
<br />
<div style="text-align: justify;">
Quando me viam, parado e recatado,
no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhando,
de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a
quietude. Eu era um afinador de silêncios.</div>
<div style="text-align: justify;">
- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.</div>
<div style="text-align: justify;">
Ao fim do dia, o velho se recostava
na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus
pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a
cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele
sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:</div>
<div style="text-align: justify;">
- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.</div>
<div style="text-align: justify;">
Ficar devidamente calado requer
anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum
antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia
ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara
que já não vivia entre nós, os vigentes viventes. </div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
[334] </div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-23381596039445739192013-02-01T08:59:00.000+00:002013-02-01T08:59:31.768+00:00<b>Mia Couto</b><br />
<br />
MEIA CULPA, MEIA PRÓPRIA CULPA<br />
<br />
“Nunca quis. Nem muito, nem parte. Nunca fui eu,
nem dona, nem senhora. Sempre fiquei entre o meio e a metade. Nunca
passei de meios caminhos, meios desejos, meia saudade. Daí o meu nome:
Maria Metade.<span class="quote">
</span><br />
Fosse eu invocada por voz de macho. Fosse eu retirada da ausência por
desejo de alguém. Me tivesse calhado, ao menos, um homem completo,
pessoa acabada. Mas não, me coube a metade de um homem. Se diz, de
língua girada: o meu cara-metade. Pois aquele, nem meu, nem cara. E se
metade fosse, não seria só a cara, mas todo ele, um semimacho. Para
ambos sermos casal, necessitaríamos, enfim, de sermos quatro.<br />
A meu esposo chamavam de Seis. Desde nascença ele nunca ascendeu a
pessoa. Em vez de nome lhe puseram um número. O algarismo dizia toda a
sua vida: despegava às seis, retornava às seis. Seis irmãos, todos
falecidos. Seis empregos, todos perdidos. E acrescento um segredo: seis
amantes, todas actuais.<br />
Das poucas vezes que me falou, nunca para mim olhou. Estou ainda por
sentir seus olhos pousarem em mim. Nem quando lhe pedi, em momento de
amor: que me desaguasse uma atenção. Ao que retorquiu:<br />
- Tenho mais onde gastar meu tempo.<br />
Engravidei, certa vez. Mas foi semiprenhez. Desconcebi, em meio
tempo, meio sonho, meia esperança. O que eu era: um gasto, um extravio
de coisa nenhuma. Depois do aborto, reduzida a ninguém, meu sofrer foi
ainda maior. Sendo metade, sofria pelo dobro.<br />
Pede-me o senhor que relate o sucedido. Quer saber o motivo de estar
nesta cadeia, desejando ser condenada para o resto deste nada que é a
minha vida? O senhor que é escritor não se ponha já a compor. Escreva
conforme, no respeito do que confesso. E tal e qual.<br />
Pois, conforme lhe antedisse: a verdade não confio a ninguém. Verdade
é luxo de rico. A nós, menores de existência, resta-nos a mentira. Sovi
pequena, a minha força vem da mentira. A minha força é uma mentira. Não
é verdade, senhor escritor? Por isso, lhe deitei o aviso: eu minto até a
Deus. Sim, Lhe minto, a Ele. Afinal, Deus me trata como meu marido: um
nunca me olha, o Outro nunca me vê. Nem um nem outro me ascenderam a
essa luz que felicita outras mulheres. Sequer um filho eu tive. Que
ter-se filhos não é coisa que se faça por metade. E metade eu sou. Maria
Metade. Agora, o que aspiro é ficar em sombra perpétua. Condenada por
crime maior: apunhalar meu marido, esse a quem prestei juramento de
eternidade. É por causa desse crime que o senhor está aqui, não é assim?<br />
Pois lhe confesso: aqui, penumbreada nesta prisão, não sofro tanto
quanto sofria antes. É que aqui, sabe, acabo saindo mais que lá em minha
casa natal. Vou onde?<br />
Saio pelo pé de meu pensamento. Por via de lembrança eu retorno ao
Cine Olympia, em minha cidade de outro tempo. Sim, porque depois de
matar o Seis reganhei acesso a minhas lembranças. É assim que, cada
noite, volto à matiné das quatro de minha meninice. Não entrava no
cinema que me estava interdito. Eu tinha a raça errada, a idade errada, a
vida errada. Mas ficava no outro lado do passeio, a assistir ao riso
dos alheios. Ali passavam as moças belas, brancas, mulatas algumas. Era
lá que eu sonhava. Não sonhava ser feliz, que isso era demasiado em mim.
Sonhava para me sentir longínqua, distante até do meu cheiro. Ali,
frente ao Cinema Olympia, sonhei tanto até o sonho me sujar.<br />
Regressava a horas, entrava em casa pelas traseiras para não chorar
ante os olhos sofridos de minha mãe. Minha fatia de tristeza era uma
ofensa perante as verdadeiras e inteiras mágoas dela. Regressava depois
do quarto, olhos recompostos, fingindo uma alegriazita. Minha mãe se
apercebia do meu estado, desembrulho sem prenda. E me dava conselho:<br />
- Sonhe com cuidado, Mariazita. Não esqueça, você é pobre. E um pobre não sonha tudo, nem sonha depressa.<br />
Vantagem da prisão é que todo o dia é domingo, toda a hora é de
matiné das quatro. É só meu sonho dar um passo e eu já vou sentando
minha privada tristeza no passeio público. Volto onde eu não amei, mas
sonhei ser amada. É só um passo e eu atravesso o passeio público. E não
mais precisarei de invejar o sorvete, o riso, a risca no penteado.<br />
Pouco restou da minha cidadezinha. Onde era terra sem gente ficou
gente sem terra. Onde havia um rosto, hoje há poeira. O trilho das
goiabas se asfixiou no asfalto. Nem a chuva tem onde repousar. A cidade
se foi assemelhando a todas as outras. Nessa parecença, o meu lugar foi
falecendo. Nessa morte foi levada minha lembrança de mim. A única
memória que me resta: a migalha de um tempo, o único tempo que me deu
sonhos. Sob vigilância de minha velha mãe, eu cuidava de não sonhar
tudo, nem depressa. Ainda que fossem metades de sonhos, esses pedaços
ainda me adoçam o sono, deitada no frio da cela.<br />
O senhor não está aqui por mim. Mas por minha história. Isso eu sei e
lhe concedo. Quer saber como sucedeu? Foi em tarde de cinza, o céu
descido abaixo das nuvens.<br />
Eu pretendia era revirar página de um despedaçado livro. Descosturar-me
desse Seis, meu marido. Eu queria me ver separada dele para sempre,
desunidos até a morte nos perder de vista. Até não ser possível
morrermos mais.<br />
Naquela vez, já a decisão me havia tomado. Fui recebê-lo na porta, a
roupa abotoada por metade, o punhal escondido em minha mão. Chovia, de
lavar céu. Eu mesma me aguei aos olhos de Seis. Brinquei, provoquei,
mostrei o cinto distraído, desapertado. Provoquei com perfume que minha
vizinha me emprestou.<br />
- Você quer-me molhada pela chuva.<br />
- Quero-lhe é mais molhada que chuva.<br />
Então, quase derrapei em minha decisão. Estava-se emendando
fatalidade? É que, por primeira vez, meu marido me olhou. Seu rosto se
emoldurou, único retrato que comigo guardo. Para disfarçar, revirei a
chuinga entre os lábios, fiz adivinhar o veludo da carícia. Mas o gesto
já estava fadado em minha mão e, num abrir sem fechar de olhos, o meu
Seis, que Deus tenha, o meu Seis estava todo pronunciado no chão.
Decorado com sangue, aos ímpetos, mapeando o soalho.<br />
Relatei o sucedido, tudo de minha autoria. Mas não confesso crime,
senhor. Não. Afinal, não fui eu que lhe tirei vida. A vida, a bem dizer,
já não estava nele. O que sucedeu, sim, foi ele tombar sobre o punhal,
tropeçado em sua bebedeira. O Seis, meu Seis, se convertera em meia
dúzia. A condizer com a minha metade de destino.<br />
Não o matei. E disso tenho pena. Porque esse assassinato me faria
sentir inteira. Por agora, prossigo metade, meio culpada, meio
desculpada. Por isso lhe peço, doutor escritor. Me ajude numa mentira
que me dê autoria da culpa. Uma inteira culpa, uma inteira razão de ser
condenada. Por maior que seja a pena, não haverá castigo maior que a
vida que já cumpri. E agora, por amor dessa mentirosa lembrança, o
senhor me abra a porta do Cine Olympia. Isso, faça-me esse obséquio, lhe
estou agradecendo. Para eu, finalmente, espreitar essa luz que vem de
trás, da máquina de projectar, mas que nos surge sempre pela frente. E
sente-se comigo, aqui ao meu lado, a assistirmos a esse filme que está
correndo. Já vê, lá na tela, o meu homem, esse que chamam de Seis? Vê
como ele, agora, no escurinho da sala está olhando para mim? Só para
mim, só para mim, só."<br />
<br />
<br />
[333] <br />
Unknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-24102173340101056262012-05-08T14:56:00.003+01:002012-05-08T14:59:22.547+01:00<b>Joaquim Chissano</b><br />
<br />
VIDAS, LUGARES E TEMPOS (excerto)<br />
<br />
Todos os dias, nos meus primeiros meses de escola, saía da palhota do meu pai com o meu irmão, descia a ladeira com os músculos das pernas retesados para não cair. Foi assim apenas por alguns dias porque, com a prática, passámos a descer a correr, sem nos importarmos com a cacimba que nos molhava. Passávamos ao longo do arenoso caminho dos bois, atravessávamos, em seguida, o pântano onde o nevoeiro era mais denso. Tínhamos de tirar as sapatilhas para não as molharmos nos charcos que as chuvas deixavam, e não as sujarmos com o matope que ficava no carreiro que tínhamos de seguir dentre os mavungu e o caniço do pântano, tínhamos de saltar de um mcoma, raíz de mavungu, para outro quando isto nos podia salvar de mergulhar numa poça mais profunda de água ou de lama preta.<br />
<br />
Nos dias mais frios, os dentes batiam com vibração e cadência rápidas dos maxilares. Era normal. Não ligávamos a mínima importância. Não sabíamos que não estávamos agasalhados o suficiente. Nunca o tínhamos estado. O que sabíamos é que fazia frio e muita cacimba, caminhávamos, depois, pela estrada principal, alteada de saibro no meio da planície ligando o 'Ntavene' à cidade baixa. A maior parte das vezes, quando não passava o comboio, preferíamos andar ao longo da linha férrea. Estaríamos mais protegidos do perigo de sermos atropelados pelos carros ou de sermos molhados com água vermelha de saibro, caso um carro, em velocidade, entrasse num charco e a espalhasse pelos lados. Quando chegávamos à escola, ou um pouco antes, encontrávamos já lá os nossos colegas brancos que não tiritavam de frio porque levavam camisolas bem quentes que até lhes cobriam os pescoços. Nós também, nessa altura, não sentíamos tanto frio. Tínhamos andado tanto que o esforço de marchar e de correr nos aquecia.<br />
<br />
<br />
[332]Unknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-27749224970240425852011-05-15T19:49:00.003+01:002011-05-15T19:53:52.826+01:00<strong>Rui Nogar</strong><br /><br />FABIÃO<br /><br />O padre da missão falou em Deus. Deus: irmão bom. Falou nos anjos: todos amigos. Falou no céu: oh! céu bom, muito bom. Só não falou nos homens. Homem? Muito complicado mesmo. Todo gente há-de aprender sozinho. É preciso coragem. Coragem e resignação (mas que é “...signação”?). Vida é má. Muito má. Homem também. É preciso aprender sòzinho. Ser bom. Ter bom coração. Quando outra gente faz mal a você é preciso esquecer. É preciso perdoar esse gente. É preciso sofrer. É preciso...<br /><br />Fabião, mufana ainda, o boca muito aberto, os olho muito aberto, mexeu cabeça, mexeu cabeça – compreendeste sim senhor Padre...<br /><br />Padre José passou a mão pela testa, onde as teimosas gotas de suor desfizeram-se, escorrendo por entre os dedos curtos e grossos.<br /><br />Fabião cresceu pouco.<br /><br />Foi tropa: três anos escravo de caqui, corneta e meu sargento. Três anos em que toda mulher chunguila e todo moleque tinha medo do seu cinturão. Fabião era bom. Mas quem sabia? Fabião era soldado. Soldado não é bom: diz moleque, diz mulher. Fabião era bom, mas só ele sabia, mais ninguém.<br /><br />Um dia foi na “Lagoas”. Arranjou mulher de todo gente. Esse mulher estava grosso. Com certeza não viu caqui, não viu cinturão, nem sequer viu Fabião. Sentiu aquele braço forte que segurou ela quando ia cair na escada da cantina. Depois, aquele braço forte seguiu ela até colchão.<br /><br />Mulher está dormir. Ele não sabe ainda como ela chama. Também não interessa. Ele quando voltar ela não conhece ele. Mas ele também não há-de voltar. Palavra!... Mas Fabião está a gostar dela. [É] pena, dinheiro é pouco. Bem! Fabião segurou dinheiro todo, deixou no colchão e foi embora. Mulher de todo gente quando acordar há-de pensar dinheiro caíu do céu. Fabião riu. Lembrou Padre José quando falou no céu. Ih! Céu bom, muito bom mesmo!<br /><br />Três dia passou. Enfermeiro molungo deu injecção a Fabião porque doença veio. Enfermeiro molungo é bom. Tropa é bom porque tem senhor enfermeiro que cura doença de mulher.<br /><br />Carregador no cais: um ano contratado. Um ano para perder 4 (quatro) amigos. Um ano enorme e pesado, cheio de lembrança de Padre José que disse: é preciso sofrer. Ah! Padre José!... Padre José!<br /><br />Primeiro: Salvador. Caíu no porão de “Congo Maru”. Deitou sangue da boca e dos ouvidos. Não disse mais nada. Também, quando Salvador falava, pouco gente compreendia. Ele falava outra língua. De muito longe. Agora, palavra! todo gente parece querer compreender Salvador. Agora todo gente gostava saber falar com Salvador. Agora.<br /><br />Depois Agostinho e Cipriano na mesma semana. Ficou parecia papa de farinha. Assim mesmo. Só pele, com osso pisado lá dentro.<br /><br />Agostinho estava trabalhar debaixo de guindaste n.º 10. Cabo que segura aquele saco todo partiu. Era muito saco. Cheio de cimento. Agostinho não teve tempo. Não fugiu. Ficou parecia tinha cola nos pés.<br /><br />Quando pedreiro vai fazer casa com aquele cimento, há-de ficar casa com pouco sangue de Agostinho. Sangue e vida e medo de Agostinho.<br /><br />Doze e meia. Cipriano está dormir perto chapa de aço. Muito chapa de aço em cima doutro chapa de aço. Passou combóio perto. Chão fez assim assim. Chapa de aço que estava em cima mexeu, mexeu e caíu. Mesmo na cabeça de Cipriano. Cipriano não acordou nunca mais. Ele tinha cabeça grande e duro. Quando jogava borracha dava cabeçada com força. Maningue força. Partia sempre cabeça de outro gente. Cipriano nunca mais vai jogar porrada. Nunca mais vai dar cabeçada.<br /><br />Quando estava quase acabar contrato de Fabião, foi Saúl.<br /><br />Saúl, capataz indígena. Não gritava muito. Não chatiava muito. Carregador gostava dele.<br /><br />Um dia estava entre dois vagão. Via serviço de contratado. Cantava mesma cantiga de contratado, ih! cantiga de contratado é malcriado. Muito malcriado mesmo. Diz coisa que não pode dizer. Por isso contratado gostava daquele cantiga. Por isso trabalha bem com cantiga. Lingote de cobre pesa menos. Vida custa menos.<br /><br />Saúl cantava muito bem. Ali perto estava máquina vaivem com manobra. Máquina foi. Escondeu atrás de armazém L. Depois máquina veio. Faz barulho. Não deixa ouvir cantiga. Agulheiro não pode segurar máquina. Voz de Saúl, voz de contratado, voz de máquina é um só. Tudo canta mesma cantiga. Máquina galgou cicatriz de linha. Entrou no caminho errado. Saúl canta maningue bem mesmo! Máquina apanhou primeiro vagão da frente. Chocou. Empurrou. No meio Saúl canta ainda. Vagão correu, agarrou barriga de Saúl – cantiga parou agora mesmo no boca de Saúl – e engatou noutro vagão. Barriga de Saúl engatou também. Cantiga parou. Todo gente correu. Ficou ver tripa de Saúl que baloiça pendurada no engate do vagão. Ambulância gritou e veio levar voz de Saúl. Nunca mais ele vai cantar cantiga de contratado. Cantiga malcriado. Ah! mas a culpa é do cais. Cais não presta. E por isso cantiga é malcriado. E por isso cantiga de malcriado há-de ficar mais malcriado ainda. Muito mais.<br /><br />Fabião quando saíu última vez no Porta Cinco, cuspiu com força para o chão. Fazia frio. Fabião trazia no corpo farrapos de ganga azul desbotada. O céu lá longe era azul também. Azul desbotado.<br /><br />Mineiro do Rand: 16 meses soterrado. Dezasseis meses de medo: o grisú, monstro que não se vê, não se cheira, não se pressente a estoirar a todo o momento. Dezasseis meses! Quem sabe se o amanhã não o é para Fabião? Toneladas de terra equilibram-se sobre as formigas e os homens que as imitam. Num segundo podem transformar-se numa imensa sepultura. Todos sabem isso. Mas são dezasseis meses necessários para Fabião e seus companheiros. Libras, pounds irão comprar amanhã casacos de pele de leopardo, calças de bombazine, peúgas e meias de futebol das mais berrantes, sapatos fortes, grosseiros, etc. etc. E depois, lá na terra, a certeza duns braços de mulher.<br /><br />Fabião economiza. Não compra máquina de costura em quinta mão, nem bicicleta sem roda, nem outra porcaria. Vai fazer palhota maticada. Pintar porta e janela verde com dois risco amarelo. Machamba pequena. Milho, amendoim e mandioca.<br /><br />Dez meses passou. Fabião não pode dormir. Tosse não deixa. Ele de manhã cedo vai fazer curativo. Depois vai outra vez buscar tosse lá dentro da mina. Falta pouco para acabar contrato. Tosse não pára. Fabião quando voltar para terra não vem sòzinho. É capaz mesmo, esse coisa que acompanha ele, não deixar Fabião chegar no terra. Fazer machamba, palhota maticada com porta e janela verde com dois risco amarelo, semear milho, amendoim, mandioca, arranjar mulher, gastar libra, pound.<br /><br /><br />[331]Unknownnoreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-38427640941890355282011-04-14T11:02:00.000+01:002011-04-14T11:03:22.614+01:00<span style="font-weight:bold;">Rui Knopfli</span><br /><br />INVENTÁRIO<br /><br />Rosas inglesas rosa pálido tingido<br />de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.<br />Na mão a demorada taça de ordálio,<br />ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.<br />Objectos familiares, ténues, difusas<br /><br />lembranças de longe. Um crânio<br />de ébano negrejando entre a luz<br />e a garrulice do barro artesanal,<br />o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,<br />ao sonho, amortalhada na distância.<br /><br />O cajueiro e a mafurra, micaias<br />agrestes, panoramas da infância,<br />dolorosos, esbatidos fantasmas<br />de outro tempo, agigantados em olmos<br />e castanheiros na oval cinzenta<br /><br />do No Man's Common. Livros por abrir<br />dormitando na poeira, o gráfico<br />anguloso do horóscopo, retratos,<br />memória paralisando o instante<br />esquecido. A mulher de passagem,<br /><br />velo fulvo, debrum para o azul<br />lavado do olhar, perfil mitigando<br />a vacilante modorra do entardecer.<br />Alongada curva do flanco retraindo-se<br />sob a experimentada carícia antiga<br /><br />dos dedos cansados. Toda a memória<br />inflectindo o gesto, o gesto já só memória<br />que de si mesma se desprende e afasta,<br />conjecturando, indolor, a paisagem<br />neutra dos dias que se avizinham ermos.<br /><br /><br />[330]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-5195467300633192392011-04-07T17:49:00.001+01:002011-04-07T17:52:40.469+01:00<span style="font-weight:bold;">José Alberto Sitoe</span><br /><br />TOMBAZANA, MAMANA, COCUANA<br /><br /><span style="font-style:italic;">(à memória de Josina Muthemba Machel, falecida em 7 de Abril de 1971)</span> <br /><br />sete de abril é teu dia<br />dia da mulher moçambicana <br /><br />seja esbelta tombazana<br />ou mamana de airosa capulana,<br />hajam cãs de cocuana<br />sete de abril é o teu dia,<br />dia da mulher moçambicana<br /><br />todas és Josina, é teu dia<br />dia da pioneira na emancipação<br />da Mulher na mata renascida<br />que foi obreira na libertação <br /><br />mulher africana, por graça moçambicana<br />aquela que é dupla grávida, antes e depois de parir:<br />no antes traz na barriga o Futuro,<br />carrega-o às costas quando ele aprende a sorrir<br /><br />sete de abril é teu dia<br />dia de lembrar ao mundo<br />que haja vento, sol ou chuva<br />batas ou não o pilão no campo,<br />na mata ou na cidade<br />há um sorriso que baila e cresce<br />porque sete de abril é teu dia<br />dia da mulher que fez a revolução <br /><br /><br />[329]Unknownnoreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-40696641297366244752010-10-24T20:01:00.001+01:002010-10-24T20:03:19.340+01:00<strong>José Eduardo Agualusa</strong><br /><br />MILAGRÁRIO PESSOAL (excerto)<br /><br />O grupo organizou-se como um coral, as mulheres à direita e os homens à esquerda. Dois dos homens, à frente, carregavam compridos batuques artesanais, feitos de pele de antílope bem esticada. Outro trazia uma flauta de bisel. Foi este quem deu início à cerimónia, soprando uma melodia aérea, levemente árabe, à qual, ao fim de dois minutos, se juntaram os batuques, primeiro num sussurro, depois cada vez mais rápidos, num galope urgente, e então um dos homens irrompeu a cantar, numa poderosa voz de tenor, arrastando o coral. Levei alguns minutos para compreender, em sobressalto, que cantavam em português, ou melhor, num idioma em ruínas que, séculos antes, havia sido o nosso. Levei bastante mais tempo, quatro ou cinco dias, para compreender que aquilo que eles cantavam eram fragmentos de um diário - o testemunho de um marinheiro que Vasco da Gama deixou em Melinde, um lançado, e que por ali ficou fazendo filhos. Ao que parece, muitos filhos.<br />Julgo que os descendentes de Diogo Mendes decidiram transformar em canções o diário do avô português, transmitindo-o depois, nesse formato, de geração em geração, como forma de melhor o preservarem. Pouco a pouco, porém, à medida que se iam esquecendo do sentido das palavras, passaram a atribuir-lhes propriedades mágicas.<br /><br /><br />[328]Unknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-65573088935200036922010-08-11T22:14:00.000+01:002010-08-11T22:15:50.717+01:00<strong>Luís Carlos Patraquim</strong><br /><br />A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 3)<br /><br />Todas as cidades têm as suas entranhas e estranhezas. Apesar de Maputo não ter muito de labiríntico, e digo isto se exceptuarmos os chamados subúrbios, anverso do cimento, não se lhe conhecem túneis nem grutas como em Nápoles, ou Roma, para só citar dois nomes.<br /><br />Desenhada a régua e esquadro, aqui um quase boulevard que sai da Praça junto ao porto e sobe, em suave inclinação, até ao Conselho Executivo, a baixa e a alta espraiam-se, regra geral, em quarteirões que as paralelas e as perpendiculares demarcam. Uma e outra sinuosidade, alguns gavetos, pátios interiores, numa arquitectura monótona. Há excepções, a que é preciso estar atento. Outras impõem-se. Outras, ainda, ruíram. <br /><br /><br />[327]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-8862207446329634522010-07-22T23:19:00.001+01:002010-07-22T23:21:06.963+01:00<strong>Grabato Dias</strong><br /><br />AMOR. TE. TI, TIGO, A MORTE. AMO-TE<br /><br />Amor. Te. Ti, tigo. A morte. Amo-te<br />sem R, sem risco ao meio da morte.<br />Quero-te assim, querente, quente e forte<br />ode que a circunstância obriga a mote.<br /> <br />Quatorze versos no papel e dou-te<br />exangue e medido ramo. O corte<br />já deixou de sangrar. Pinhos do norte!<br />Que ricas tábuas de caixão, pra bote!<br /> <br />No mundo em pedaços repartida<br />ficou-me a mim e ao luis vaz a vida,<br />galinha gorda rebolante ao espeto.<br /> <br />Me, mi, Mimi, migo... Ó amiga, as migas<br />ainda são um bom prato, e até com ligas<br />de duquesa se faz tanto soneto. <br /><br /><br />[326]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-79667779893223659652010-07-18T22:59:00.000+01:002010-07-18T23:00:38.044+01:00<strong>Luís Carlos Patraquim</strong><br /><br />A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 2)<br /><br />A verdade é que sucediam episódios estranhos na cidade. Fazer machamba na banheira, arrancar o parquet para lenha, confusionar os elevadores até eles ficarem teimosos e pararem, isso até que se explicava com as adaptações à urbe. Mas as cabeças que começavam a aparecer sozinhas ensombravam os sonhos de Zefanias. Já não bastava os ataques dos boers, as lojas do povo só com papel higiénico quando até a comida era uma dificuldade, para esses xipókwés desesconderem-se na sua condição de limbo e apresentarem-se em forma de cabeças. Cabeça é para pensar e estar no corpo, as duas partes não hão-de ficar separadas.<br /><br /><br />[325]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-55077114398063666182010-07-13T23:01:00.002+01:002010-07-13T23:03:47.173+01:00<strong>Luís Carlos Patraquim</strong><br /><br />A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA (excerto/ 1)<br /><br />Morava no que fora um chalet, na Avenida 24 de Julho, quando os tramways subiam a D. Carlos, depois Manuel de Arriaga, agora Karl Marx, dobrando a Central Eléctrica e subindo, chiando, extenuando-se.<br /><br />"A 24 de Julho é uma avenida coerente".<br /><br />Verdade que a frondosa via, que atravessa a cidade a meio, na sua parte alta, desenrolando-se desde o bairro da Polana até ao Alto Mahé, mantivera a mesma designação. Nome desde o antigamente por causa da sentença do Marechal Mac-Mahon sobre os territórios da Catembe, defronte da baía, que Sua Majestade britânica reivindicava à dita soberania portuguesa e que assim se manteve por ter sido essa a data das famosas nacionalizações, loguinho mesmo a seguir à independência. Zefanias, que não era dado a sinuosidades semânticas, classificava como <em>mesmura</em> essa teimosia toponímica, alheio a manifestas incoincidências políticas. Nunca lhe consegui uma explicação para o termo. <br /><br />O dito chalet, verdade seja, tinha mais de evocação do que de estatuto, relíquia de uma certa belle époque cujos perfumes cruzaram os oceanos, dobraram o cabo e aportaram na cidade. Aqui uma frontaria em arcos, lavrada, uns muros à inglesa, colunatas modestas, um e outro hotel junto ao porto, o can-can de algumas vaporosas francesas. Mas a cidade era na baixa. No altos, que Mouzinho de Albuquerque ainda subira a cavalo poucos anos antes com medo das emboscadas, a zona fresca propiciava as casas avarandadas onde uma burguesia sempre apavorada com a biliosa mas a prosperar podia dizer que pegava na lancheira e ia para o campo. Poucos sobravam, quase nenhuns, diga-se a verdade, ora substituídos ou acrescentados, ora vergastados pelo tempo.<br /><br /><br />[324]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-6396540570610857612010-07-04T16:49:00.002+01:002010-07-04T16:52:21.880+01:00<strong>Luís Carlos Patraquim</strong><br /><br />REINALDO FERREIRA<br /><br />Cores do poema<br />alado<br />Garupa azul<br />Quando cais<br />Gorjão<br /><br />[323]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-48918743052824411212010-02-22T21:41:00.001+00:002010-07-04T16:52:37.356+01:00<strong>Eduardo White</strong><br /><br />ASSUME O AMOR COMO UM OFÍCIO<br /><br />Assume o amor como um ofício<br />onde tens que te esmerar,<br /><br />repete-o até à perfeição,<br />repete-o quantas vezes for preciso<br />até dentro dele tudo durar<br />e ter sentido.<br /><br />Deixa nele crescer o sol<br />até tarde,<br /><br />deixa-o ser a asa da imaginação,<br />a casa da concórdia,<br /><br />só nunca deixes que sobre<br />para não ser memória.<br /><br /><br />[322]Unknownnoreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-63906621556829249082009-07-09T22:24:00.000+01:002009-07-09T22:25:29.237+01:00<strong>Luís Carlos Patraquim</strong><br /><br />JOSÉ CRAVEIRINHA<br /><br />Do meu amigo chegarão as flores<br />e os vaticínios<br /><br /><i>a dog starv’d at his master’s gate<br />predicts the ruin of the State</i><br /><br />Tanjarinas!<br /><br />E de mulheres mil<br />Um Nome,<br /><br />Ou a pátria,<br />Rendilhada cortina<br />Que a usura pui,<br />E o cós da angústia<br />No blazer que a Noite em verbo nua<br />anverso da máscara<br />Convocando Xipokwés e géiseres e<br />as aprazíveis praias onde Ulisses<br />Aportou,<br /><br />Do meu amigo chegarão as flores<br />Ai, deus, e u é?<br /><br /><br />[321]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-7634827230777860982009-06-14T19:00:00.003+01:002009-06-14T19:03:57.246+01:00<strong>Paulina Chiziane</strong><br /><br />O ALEGRE CANTO DA PERDIZ (excerto)<br /><br />Para suavizar a verdade e penetrar a profundidade, José dos Montes conta histórias antigas. As melhores histórias começam todas da mesma maneira. Era uma vez....<br />- A voz do sangue convocou este magno encontro – explica José dos Montes -, sob nossas veias corre o sangue sagrado das pedras. O céu azul foi chocado nos Montes Namuli, num ovo de perdiz. Nasceu com asas de pássaro, voou e colonizou a terra inteira. Aqui nasceu a primeira estrela, do ovo da mesma perdiz, estalou até ao céu, explodiu e espalhou-se como fogo-de-artifício formando a Via Láctea. É aqui o princípio do mundo. O fim do mundo. Todas as raças nasceram aqui. Dão a volta ao mundo e regressam, porque os Namuli unem todos os que querem bem para que comam numa só concha e bebam a água da mesma nascente.<br />Os braços do canavial ondeiam ao vento, soltando uma fanfarra imensa. Trazendo memórias de todas as origens e a razão da escravidão humana à volta dos cocos, do chá e do sisal.<br />O rio Zambeze, o mar, o palmar e os Montes Namuli unem-se num polígono de diamante. Deus criou esta terra num momento de felicidade e a prendou de beleza extrema, causando paixão exacerbada em qualquer viandante e, por isso, era uma vez....<br />Histórias de navegadores que se fizeram ao mar em busca de pipipiri numa terra distante. Histórias das onze sereias, todas irmãs, sendo a Zambézia a mais bela. Memórias dos marinheiros e do chicote dos prazeiros. Histórias das donas e sinhás. Da Companhia da Zambézia, do Boror e do palmar. Histórias das mulheres guerreiras que penetram na fortaleza do invasor, roubaram as sementes os homens e construíram a barreira da vida, mostrando ao mundo quem, perante a mulher zambeziana, o invasor não tem omnipotência. Provando que superioridade das raças era simples treta. Histórias dos deusues dos montes que abençoaram a Zambézia com o sangue divino de pretos, brancos, amarelos, numa sopa de raças mais recheada que sopa de pedra.<br />- Somos fazedores de chuva e guardiães da água – explica José dos Montes. – Comandantes da trovoada. Nascemos ao canto das perdizes, gurué, gurué! Construímos nas cavernas. Agricultávamos os cereais cm cornos de antílope. Dos ossos longos das gazelas fazíamos os cachimbos para tabaco dos nossos guerreiros. Vieram os brancos e fomos apanhados como ratos. Escravizaram-nos.<br />Todos erguem os olhos para contemplar mais uma vez a imagem da terra mãe na gestação do mundo. Deixando aflorar a emoção no coração do Éden. Contemplando os montes à distância, confirmando tudo o que já sabiam. És filho apenas do ventre da tua mãe. Desde o nascimento estás só e viverás só. És mãe apenas quando o filho te habita o ventre. Depois do parto, cada um ganha identidade própria e segue o seu próprio destino.<br />- Somos de passos silenciosos, que pisam o chão em segredo. Que não aceitam a prisão de uma casa. Passos de aventuras na descoberta do novo mundo. Construímos o lar nas encostas dos montes e fomos arrastados pelas enxurradas, éramos filhos das aboboreiras semeadas nas bermas das estradas, colhidos por qualquer viandante. Palmilhávamos o solo até aos confins da terra. Damos a volta silenciosamente e estamos aqui, no ponto de partida. Aqui tudo começa e tudo termina. O mundo é redondo.<br />A voz inquisitiva dos filhos se ouve. Se os antepassados foram ontem heróis, não se entende que os descendentes saboreiem a parte mais amarga do percurso. <br /><br /><br />[320]<br /><br />Colaboração enviada pela Vera LúciaUnknownnoreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-50222788733556673472009-06-07T00:01:00.000+01:002009-06-07T00:02:16.212+01:00<strong>Luís Carlos Patraquim</strong><br /><br />RUI NORONHA<br /><br />Porque te esquecerão<br />E mesmo a língua<br />Os outros<br />Os que julgam ser e os poetas<br />larvas lavras seculares<br /><br />Eu te redimo<br />Imperial e livre<br />- quenguêlêquêzê! - <br />pai criança das origens<br />infinito<br />sob a lua prismática<br />do Índico<br /><br /><br />[319]Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5430718.post-41248342330759662912009-06-03T16:07:00.001+01:002009-06-03T16:11:11.351+01:00<strong>Glória de Santana</strong><br /><br />EPITÁFIO<br /><br />Eu um dia serei uma poalha de vento<br />pousando inadvertidamente em tua face<br /><br />e me sacudirás<br /><br />Eu um dia serei uma réstea de chuva<br />caída por acaso em tua fronte<br /><br />e me sacudirás<br /><br />E eu um dia serei a última lembrança<br />imponderável já na tua mente<br /><br />e então me esquecerás<br /><br /><br />[318]Unknownnoreply@blogger.com6