quinta-feira, outubro 30, 2003

Mutimati Barnabé João

EU, O POVO

Eu, o Povo
Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão
Fiz desta força um amigo fiel.

O vento sopra com força
A água corre com força
O fogo arde com força

Nos meus braços que vão crescer vou estender panos de vela
Para agarrar o vento e levar a força do vento à Produção.
As minhas mãos vão crescer até fazerem pás de roda
Para agarrar a força da água e pô-la na Produção.
Os meus pulmões vão crescer soprando na forja do coração
Para agarrar a força do fogo na Produção.

Eu, o Povo
Vou aprender a lutar do lado da Natureza
Vou ser camarada de armas dos quatro elementos.
A tática colonialista é deixar o Povo ao natural
Fazendo do Povo um inimigo da Natureza.

Eu, o Povo Moçambicano
Vou conhecer as minhas Grandes Forças todas.


[31]

sexta-feira, outubro 24, 2003

Fonseca Amaral

PENITÊNCIA

Vou expor-me a um Vento
Vou expor-me a uma Chuva
Sem um lamento.

Vou expor-me a uma Chuva
Para te lavar, ó corpo vil,
Para te livrar da densa bruma
Que sinto dentro em ti
Tão dentro, tão dentro
Que é quase fora de ti.

Vou expor-me a um Vento,
Para tu, Alma, voares bem longe
E só voltares
Depois de o corpo expurgado
Clamar por ti.


(Colaboração: Licuari)

[30]

quarta-feira, outubro 22, 2003

Eugénio Lisboa

NO TEMPO EM QUE, FERNANDO

Ao José Craveirinha

Era terra de sol e alegria,
de húmida, vegetal espessura:
ali a minha voz acontecia,
com o ritmo do sangue e da negrura.

Agora, a neve branca cobre a estrada,
com seu manto de noite e solidão.
Já, se o círculo traço, não há nada,
se não fora gelada vibração.

Era terra de ouro fecundada,
força macha, leal, apetecida.
Era chuva, magia visitada,
era sal, sugestão de força ardida.

Agora é só o branco que faz mal
ao filho cujo sal já emigrou.
A vida, agora, é lisa, mineral,
o coração, gelado, sossegou.


[29]
Bibliografia essencial: Eugénio Lisboa, Matéria Intensa, Instituto Camões

sexta-feira, outubro 17, 2003

Rui Knopfli

PONTA DA ILHA

Nem o solo em que assenta o estuque
de nossos casebres foi poupado.
Olhai em redor e podeis vê-lo
convertido na sólida pedra de vossos bastiões,
nos opulentos muros da máquina de guerra
que, pacientemente, fostes erguendo
por nosso trabalho, suor e amargura.
Daqui mal lobrigamos o mar.
Sentimo-lo apenas no odor e na viração
que tremula ao topo das palmeiras.
Perfazem o horizonte raso deste microcosmos
em que a fome, apesar de tudo, sorri.
telhados de macute que se repetem
sempre iguais, ruelas de terra batida
entrelaçadas em labirinto rústico,
o peixe, sobre a teia de lacalaca,
curtindo ao sol de um longo meio dia,
as crianças que brincam seminuas
na poeira cinza, o cão esquelético
preguiçando à sombra e a galinha
tonta que cisca na distância.
À nossa volta sobram os templos e os deuses.


[28]

domingo, outubro 12, 2003

Orlando Mendes

RIGOR

Quando passa e aí devotamente se demora
o erudito na volúpia dos contornos subtis
para televisionar durante uma hora
o que se pratica e mais o que se diz
não pense que dispensamos o rigor da geometria
e da linguagem que nos faz a fala.
Sabemos como se desenha e pronuncia
cada sílaba de palavra nova
porque o escrúpulo gramatical é a verdade que o prova
assim um corpo no amor outro possui e dá-se
e a mulher pariu um filho e o embala.
Sim usamos régua, esquadro e compasso
e o vocábulo e a sintaxe
para medir a minúcia de cada traço
e formar o sentido exacto de cada frase
não leccionados. E se for preciso que se arrase
o antigamente caiado e agora decrépito muro
onde mão privilegiada escreveu
em nome da metrópole cerebral
«decreto: quem sabe e dita sou.»
Hoje temos o mar e o nosso próprio sal.


[27]
Bibliografia essencial: Orlando Mendes, Lume Florindo na Forja, edições 70

quarta-feira, outubro 08, 2003

Rui de Noronha

GRITO DE ALMA

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.

Vai. Segue o teu destino. A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor ...


[26]

domingo, outubro 05, 2003

Bibliografia essencial: As Mãos dos Pretos - Antologia do Conto Moçambicano, Organização e Prefácio de Nelson Saúte, Publicações Dom Quixote

quarta-feira, outubro 01, 2003

Glória de Santana

DIA AFRICANO

Os corvos marcam
trajectórias largas pelo dia branco,
por sobre a cabeça
dos negros cantando.

Há vento disperso,
rasgando nas folhas das árvores altas,
melodias lentas
de antigas desgraças.

E restos de luz
de um sol sugerido por neves quietas,
caem dos telhados
e batem nas pedras.

Tudo hoje é denso
como uma gravura de atitude rítmica,
pousada nos vidros
cortada da Bíblia.


[25]
Link importante: Artes & Letras de Moçambique