sábado, julho 26, 2003

Rui Knopfli

PROPOSIÇÃO

Falo de outro país singular,
do perfume aloirado
e desse sabor a pão matinal.

Falo, na distância,
de distâncias quietas
recortadas no zumbido oloroso
de casuarinas azuis.

Falo de paisagens tenras
e sombrias, simétricas,
como parques e losangos.

Trago notícias de outro clima
pairando em luz e pólen,
em suaves ardências de especiaria.

Falo de outras vozes estranhas,
de murmúrios e ruídos indiscerníveis,
dos pequenos ardis do silêncio.

Falo de corpos ágeis
e elegantes como gráficos
que se armam sem impaciência.

Falo de um céu onde estrelas
serenas navegam presságios
e do refúgio em uma outra
dimensão inusitada.

Falo da beleza das coisas
simples e elementares:
a água, o pão e o vinho.

Iludindo o espanto de viver
falo de estar vivo
e desse outro inventado país,

singularmente habitado, fora
da possibilidade de habitação.


[16]

domingo, julho 20, 2003

Rui Knopfli

NA MORTE DE REINALDO FERREIRA

Recusando a simetria académica
dum frio céu azul,
desce por si à desarmonia incandescente
dos infernos,
mergulhando até às ilhargas
no lodo carnal das paixões
que arrastou em vida.
Desce puro,
desce sereno,
na electricidade estática do olhar,
no amarelo dos cabelos em desalinho,
- uma enorme flor lilás
abrindo-lhe o fundo, magro peito.
Desce,
o menestrel de tontas melodias,
aos panoramas de uma infância
adulta.
O que na vida repartiu seu poema
por alados guardanapos de papel,
o criador de sonhos logo perdidos
na berma dos caminhos,
o mago que pressentia o segredo
da beleza perene,
recusa
a estática arquitectura dos parténones celestes
e desce,
simples,
sangrando,
sereno,
à angústia vulcânica dos infernos torturados,
onde
se mira como num espelho.


[15]
Sebastião Alba

REINALDO FERREIRA

Antes de mim, já outros o fizeram.
Dominadores de mundos circunscritos,
só se submetem aos que consideram
ser do domínio fulvo dos seus mitos.

Se vivem, é para o desnudamento
da íntima direcção que em si arrua
os gelos vindos de um cabo do alento
duma promessa a uma verdade sua.

Antes de mim, já outros o fizeram.
Com o cinzeiro cheio, amanheceram
ante a escarpa do olhar dentro de si.

Na mesa do café, tardando à mesa,
à curva do seu fardo de beleza,
como à do meu destino, obedeci.


[14]

Bibliografia essencial: Sebastião Alba, A Noite Dividida, Assírio & Alvim
Rui Knopfli

O POVO DA CHINA VISTO DO ALTO-MAÉ

Eh pá, a gente pensa na China,
nos compridos campos de arroz
e nos milhões de pessoas
vivendo lá na China.
É engraçado a gente aqui no Alto-Maé
que conhece o Kong, magrinho, da hortaliça
com aquela voz engraçada (Stá plonto patlão),
é engraçado como a gente se engana
com a China, aquele povo imenso
de Kongs amarelinhos e fala doce
que construiu a Grande Muralha
e que constrói a vida
e que, se tem tempo, se ri de nós,
da nossa pele descolorida,
dos nossos olhos redondos
e dos erres engraçados com que falamos.


[13]

segunda-feira, julho 14, 2003

José Craveirinha

PRIMAVERA

Estamos sentados.
E nefelibatas bebemos coca-cola
nas públicas cadeiras da praça.

E
sobre as envenenadas acácias
andorinhas geometrizam o azul do céu
e despercebidos passarinhos africanos
cantam nos verdes braços vegetais
de um parque da cidade moçambicana
onde jovens discutem as pernas de Brigitte Bardot
e abúlicas mãos tamborilam
no tampo da mesa fúteis dedos.

Mas um grupo de estivadores
vem do cais vestindo
sarapilheiras
e passa a três metros e meio
das cómodas cadeiras da praça
enquanto
cocacolizados
odes cantam nos ramos os bilo-bilana
e na surdina das tímidas meias-palavras
e subentendidos silêncios
ansiosos todos esperamos
indolentes as flores
da nossa comum Primavera.


[12]

quinta-feira, julho 03, 2003

José Craveirinha

ESPERANÇA

No canhoeiro
um galagala hesita
a cabeça azul.

Nos roxos
sótãos do crepúsculo
a aranha vai fiando
sua capulana de teia.

E nós?
Ah, nós esperamos
na euforia das costas suadas
que o sal do vexame acumulado
deflagre.


[11]
José Craveirinha

AFORISMO

O preconceito da ave
não é o tamanho das suas asas
nem o ramo em que poisou

Mas a beleza do seu canto
a largueza do seu voo...
e o tiro que a matou


[10]

Bibliografia essencial: José Craveirinha, Karingana ua Karingana, Edições 70