terça-feira, fevereiro 07, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / OS SAPATOS NOVOS DE JOSEFATE NGWETANA (excerto/3)

Enquanto Herculano pensa e caminha, o capim torna-se ralo e os novelos de micaias, as amálgamas de arbustos retorcidos e sem nome cedem lugar a pequenos exércitos de árvores alinhadas, trabalhadas pelos homens, ao seu gosto afeiçoadas. Abençoadas. Árvores com frutos de cascas finas como peles de mulher, caroços raros, polpa abundante e suculenta. Cremosos como a banana, sumarentos e dourados como os citrinos ou vivendo da fama do cheiro que exalam, como a massala. Acariciou uma laranja sem sequer a arrancar da pequena árvore de onde pendia, apenas para lhe sentir o arredondado da forma, a ténue rugosidade da casca, e para cheirar o leve aroma acidulado. Um pouco adiante, tomou nas mãos uma manga enorme como um coração, vermelha como ele. Arrancou-lhe a casca com os dentes como quem tira pétalas a uma flor. Cheirou-a de várias maneiras, pois são também diversos os aromas que a manga exala – florais, resinosos, aromas roubados até de outras frutas, quentes como as especiarias ou gelados como a lua se lhe pudéssemos tocar – antes de fincar os dentes nela e deixar que o sumo lhe escorresse até ao queixo. Largou-a porque viu ao lado uma goiabeira carregada de frutos maduros. Deixou-se enevoar pela magia da goiaba, pelo seu enigmático perfume, simultaneamente repugnante e irresistível. Se verde, de uma acidez estimulante; se madura, como se comêssemos pequenos novelos granulosos e suculentos. Deteve-se em frente a uma pequena papaieira vergada pelo peso das suas papaias. Irresistíveis para ele como para os pássaros que saltitavam em volta, debicando-as. Pegou no punhal e abriu uma delas a todo o comprimento, ficando por um momento a olhar a fenda oblonga e a carne cor de fogo espreitando de dentro dela, o líquido incolor que a humedecia como um soro vital. Molhou nela a ponta dos dedos, acariciando as sementes negras e contrastantes como grãos de pimenta. Enterrou-lhe os dentes com avidez e sentiu a carne ceder, no seu cerne um sabor a mel. Ébrio, deixou-se finalmente chegar à árvore das árvores, a árvore do ocanho, fruto da terra. Olhou-os ainda verdes, pendurados, ou amadurecendo no chão em volta. Provou a sua polpa boa, e quando sentiu o sabor agridoce na base da língua achou a prova palpável e definitiva de que estava chegando a casa.


[199]

Sem comentários:

Enviar um comentário