João Paulo Borges Coelho
SETENTRIÃO / CASAS DE FERRO (excerto/1)
Afloram nessa folha branca, meio enterrados nela, grandes barcos que aprecem ter sido espalhados ao acaso por Deus ele próprio, no tempo em que era criança e ali gostava de brincar. Um enorme petroleiro guardando do tempo antigo, quando ainda navegava, a mesma solene majestade; mais adiante, um modesto e inclinado navio de cabotagem de obscura história e pouco esclarecida função; postado entre os dois, um curto mas maciço barco de pesca com hirsuta cabeleira de grandes guindastes e enormes roldanas de onde pendiam umas correntes ferrugentas, à ré uma abertura tão escancarada que nos perguntamos como terá ele conseguido evitar que o mar lhe invadisse os interiores, quando era jovem e ainda navegava, Mais ao longe outros ainda, menores e de mais reduzido interesse, sem que se saiba se é a distância que os faz assim, se a impossibilidade de lhes chegar perto, mesmo na maré vazia. Tão diferentes todos, na forma e na altura, apenas partilhando a massa de que eram feitos: um ferro pardo nos dias enevoados, laranja quase vivo nos de sol, raiado de tons esverdeados que eram restos do sarro que a saliva do mar deixava neles ao lambê-los todos os dias. Disparando um brilho intenso à luz vermelha do fim da tarde, que era o sol reflectindo-se nos milhões de cracas que traziam agarradas aos costados – desorganizado reflexo. E à noite mais escuros que a própria escuridão, imóveis vultos, estranhos animais que ali se deixaram petrificar com pré-histórica paciência. Quando o mar se retirava ficavam eles secando ao sol, as cracas fervilhando uma cutânea respiração que de perto provocava intenso ruído, como se o sol os estivesse fritando. Depois, o mar voltava lentamente, molhando-lhes primeiro os ferrugentos cascos, logo depois subindo-lhes nos âmagos, onde provocava inúmeros remoinhos, e finalmente cobrindo-lhes o corpo inteiro nos mais baixos, quase todo nos restantes, deixando-lhes apenas os cocurutos de fora; e eles pacientes, dilatando e encolhendo, rangendo a dor da chegada e da partida das marés e dos dias.
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quarta-feira, julho 13, 2005
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Belo texto.
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