quarta-feira, junho 01, 2005

Isabella Oliveira

MEMÓRIA DA ILHA

Ilha de Moçambique, 1972

Giorgio e Silvana passeiam abraçados pelas ruas estreitas da ilha, gozando a brisa que a chuva, ao fim da tarde, deixou. De súbito, param para observar a figura que caminha nas arcadas semi-iluminadas da Fazenda, um dos poucos edifícios onde flutua a bandeira colonial. Trata-se de uma mulher indiana, com o rosto enrugado e excessivamente pintado. O estado decadente da seda que traja e os caracóis grisalhos que lhe irrompem do esburacado lenço garrido provocam aos dois sérias dúvidas sobre se não estarão na presença de um reencarnado manequim dos loucos anos vinte. Na boca, uma boquilha de prata, cuja filigrana condiz com a dos anéis e pulseiras que lhe adornam dedos e pulsos. Só o cheiro do tabaco, barato, não faz sentido. O cigarro apaga-se e Giorgio não perde a oportunidade para se aproximar. Quando lhe estende o isqueiro, a mulher arregala os olhos e grita:
– Afasta-te de mim, hippy! Queres pegar-me fogo?, pois morrerei como Joana d’Arc! Mas morro de pé, ao contrário dos que me traíram!

Os italianos riem e continuam o passeio. Aquela personagem não destoa no imaginário da ilha. Acabaram de assistir a uma cerimónia tradicional, onde os ritos muçulmano e macua se cruzaram e ao longo da qual os olhos de Silvana se fecharam algumas vezes para não verem um curandeiro perfurar o próprio rosto com grossas agulhas de ferro, sem que uma só gota de sangue tivesse jorrado ou qualquer sinal de dor se descortinasse. Ao seu lado, Giorgio fitara intrigado o homem de cofió vermelho, vestido de branco dos pés ao pescoço, cujos gestos eram acompanhados em silêncio por uma multidão de crentes. Ao menos, àquela gente, não tinham os portugueses conseguido domar os deuses, concluiu.

Estão na ilha clandestinos, disfarçados de um vulgar casal de turistas. Dois meses antes, o médico recebera em Dar-es-Salam um livro de fotografias, da autoria de um jornalista de Lourenço Marques, que o fizera pedir ao movimento uns dias de férias. Também ele quis sentir ao vivo a poesia de “A Ilha do Próspero”.


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4 comentários:

  1. Um beijo comovido!, Isabella.

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  2. Estou apenado, pois cresci na Ilha, e não entendo esta história.
    Alguém me ajuda ?

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  3. Ninguém me ajuda ?

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