João Paulo Borges Coelho
AS DUAS SOMBRAS DO RIO (excerto/2)
No dia seguinte, o lojista chegou como de costume. Vinha preocupado com um ligeiro atraso e por isso achou estranho que a porta estivesse fechada e as gelosias das janelas cerradas. Hesitou, bateu à porta e acabou por ir sentar-se junto dos outros criados, debaixo do alpendre, aguardando. Era uma situação inédita, aquela, e eles, habituados à rotina e à obediência, não sabiam o que fazer. Comentavam uns com os outros, falavam de coisas pequenas, esperavam. Mas a responsabilidade roía o lojista que não se sentia bem desconversando com o tempo, esperando que as coisas se resolvessem por si próprias. Por isso juntou coragem e deu a volta à casa, espreitando à procura de um sinal. Subiu os três degraus da varanda, do outro lado, batendo as palmas bem alto para pedir licença. Foi então que deparou com a patroa ao fundo da varanda, quieta, olhando o rio.
- Bom dia, patroa. Estamos já lá fora à espera de entrar. Há também alguns clientes.
Teve como resposta o silêncio. Mame Mère desinteressa-se dele, envolvida agora em assunto mais interior e fundamental. Passou a noite naquela mesmíssima posição, a mão esquerda pousada no colo e a direita no cabo do punhal, erecta, olhando o rio com os seus grandes olhos abertos. O xaile descaiu-lhe para a cintura já há muito tempo, o que de restou pouco importa: o cacimbo não molesta os mortos da mesma maneira que molesta os vivos. O sol matinal espalha-se pelo soalho da varanda e daqui a pouco chegará aos pés da congolesa e começará a trepar-lhe pelas pernas, iluminando-a.
O lojista esperou ainda um pouco, respeitoso. Mas intrigado com aquele alheamento, acabou por aproximar-se. Pigarreou primeiro, falou depois, tentando convencê-la a reagir, sem saber que Mama Mère estava já muito longe dali. Deu-se por fim conta de que o mundo desabava (quem depende daquela maneira, como o lojista e os criados, deposita sempre no protector o segredo da ordem das coisas). Deu vários passos na varanda sem se decidir por uma direcção, falou sozinho durante um bocado e acabou por fugir dali, gritando alto. De volta ao alpendre, levou ainda um tempo a fazer-se entender pelos restantes. Desataram então a falar muito alto uns com os outros, lamentando e inquirindo, descoordenados. Uns saíam do confuso círculo e iam espreitar à varanda. Voltavam depois gesticulando e bradando coisas incompreensíveis, como se visão do vulto induzisse a loucura.
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segunda-feira, agosto 21, 2006
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Descobri agora o seu blogue. Muito interessante. Também gosto muito da
ResponderEliminarliteratura moçambicana.