Carlos Gil
PRINCESA DAS DUAS CIDADES
Lá, naquele tempo em que não se viam capulanas nas varandas das avenidas, garrindo as acácias e os jacarandás usurpadores das cores turísticas, lá naquele tempo em que a naturalização da cidade estava tão longe como distava o terreiro de onde saíam naus com decretos e leis, chiar de madeiras velhas gretadas pela História que a água dos oceanos traçou.
Lá, onde os machimbombos sempre cheios quando não era dia de praia faziam sempre rumo aos subúrbios. Lá, naquele tempo em que havia duas cidades e o cimento duma ganhava fungos quando o caniço e o zinco o confrontavam, Norte e Poente, tanto, que o Sul era dos arranha-céus e a Este o mar chamava.
quando amar era perigoso se, no orgasmo, os pêlos dos amantes não brilhassem ambos em pálido rosa imperial, ou tinha tabela miscigenada em moeda com a prata da esfera armilar, repúblicos vinte escudos. Naquele tempo, lá.
nem tinham sido inventados os chapas, pois as capulanas só vinham ao cimento vender amendoim torrado e maçaroca assada, peixe e papaias no mercado. Lá, princesa das duas cidades...
O tempo caducou-se. Vieram as capulanas às varandas e penduraram-se às janelas, garrida nova flora da cidade que esmagou os jacarandás e as acácias, velho álbum de postais em que a abertura da lente não fora feita em formato technicolor: faltava-lhe a cor das capulanas quando a objectiva se virava aos céus para focar as torres, ou se espraiava colina abaixo no longo rectilíneo das árvores aveninadas. Em baixo, sorria o mar, esse fotogénico amante que a todas beija e ergue maliciosas ondas para lamber, guloso, as cores quentes da sua capulana.
(lá, naquele tempo)
Eu vim de lá. Vivi lá e lá li livros sobre fórmulas alquimísticas do viver, que não podia entender sem perceber primeiro que a areia dourada que nas suas folhas se entranhava, que as manchas das mangas que me sujavam a camisa, essas, eram as primeiras letras a ler, a cartilha da cidade. Das duas cidades... lá, naquele tempo...
– e bastava saber olhar como sabia ler. Se o tivesse feito, então perceberia que as frondosas copas das árvores eram flores dum jardim com amos e empregados, que a areia da praia era grão que só alvas pás moinhavam, pés de longe pois da cidade que raramente os via calçados.
Lá, naquele tempo, eu fartei-me de ler livros e chumbei, não passei o exame: eu não sabia ler o livro d'A Princesa das Duas Cidades. Naquele tempo eu, estando lá, não estava: não via a luz das capulanas ondeando nos prédios, brilho que se lia mais além do vermelho das acácias e do azul dos jacarandás, cores que cegavam.
[210]
sexta-feira, abril 21, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Tomara saber ler então como hoje, tomara... tomara ter sabido amar como hoje, tomara... tomara hoje e ontem se fundirem, finalmente, finalmente 'eu' daltónico saber beijar uma capulana.
ResponderEliminarHoje, escrito hoje. 25 de Abril.