Pedro Muiambo
A ENFERMEIRA DA BATA NEGRA (excerto/3)
27.
Samora Machel, uma biografia por censurar
Samora Machel tinha nascido marcado pela sina da rebeldia. Por exemplo, o primeiro ano da sua vida durou apenas um ápice. Ele crescia rápido, apressadíssimo, como se tivesse que ir marcar o lugar numa fila de pão. Quando a mãe, sem a autorização paterna, levou-o a baptizar na capela local, ele aprontou uma enormidade: urinou na pia baptismal. E Deus há-de ter ficado de tal forma ofendido, que o condenou quer a não atingir nunca habilitações literárias superiores ao quinto ano, quer a nunca saber falar coreano. O veredicto divino foi traduzido pelo padre, em português corrente:
- Leva-me esse verme daqui para fora!
Mas Samorito ia vivendo a vida que podia.
Punha-se a soluçar quando avistava um colonialista ou, ainda, quando os irmãos mais velhos, invejosos por causa dos mimos que recebia da mãe, beliscavam-lhe as nádegas.
Mas, às vezes, Samora chorava ou dançava ou se ria sem razão aceitável. Certo dia chegou mesmo a chorar horas intermináveis, como sinal de protestocontra o facto de um dos seus irmãos ter-lhe dado a lamber piri-piri. Já adulto, e depois de ascender à presidência da república, Samora veio a ganhar tal sentido de humor que autorizou os serviços da contra-inteligência, o temido SNASP, a investigar qual dos irmãos lhe tinha aprontado tão picante partida; e sentenciou: “Ponham-no o mesmo produto nos olhos”.
Para acabar com aquela choradeira o pai de Samorito, bem disposto, imitou o jeito como os mineiros grampeavam nas minas do Jone, despindo a esposa para o exemplificar…
…
Samorito gostava muito das formigas.
Um dos hobbies preferidos de Samorito consistia em contemplar as formigas na sua labuta.
Tão cedo abandonava a esteira, dirigia-se a correr para um formigueiro nas traseiras do curral de cabritos e deixava-se ali ficar, esquecido de si próprio e do cheiro nauseabundo, esperando que as formigas assomasse. Era o primeiro a saudá-las com um awuxeni vamakweru.
Até já as conhecia pelos nomes! Elas também o conheciam pelo nome, mas por qualquer razão misteriosa nunca pronunciavam em voz alta.
Adorava também vê-las, as formigas, a trabalhar, ou mais concretamente, a arrastar bichinhos. Aliás, foi nessa época que aprendeu as suas primeiras lições sobre como a união faz a força. Há, inclusive, quem acredite que tenha sido uma formiga que lhe recomendou a organização das jornadas colectivas de trabalho implementadas a seu mando muito mais tarde, após o alcance da independência nacional.
Quando o sol se aprumava e queimava o chão, as formigas viam-se à nora para fazer o seu trabalho. Samorito, cheio de compaixão, pegava no chapéu de palha do pai e, todo bonacheirão, fornecia-lhes sombra. Era o prenúncio do seu “internacionalismo militante”.
Até se dava bem com as temidíssimas formigas vermelhas que moravam, e, para nossa felicidade, continuam a morar, nas árvores (imaginem se morassem debaixo dos colchões), e levam o nome xishangana de swinhonho. Certa vez, mobilizadas por Samorito, quarenta mil e três formigas, e mais uma pequenina – mas muito espertinha -, foram visitar o régulo na sua palhota e puseram-se a mordiscá-lo na abertura entre as nádegas. O régulo despojou-se completamente das vestes, saiu de casa a correr como uma flecha e gritando nyandayeyo!
Em pleno meio da tarde!
Assim ficou a povoação a saber que o seu responsável tradicional máximo tinha as nádegas muito mais escuras do que o resto do corpo, o que deu lugar a um riso comunitário…
Samorito tinha ficado na árvore onde morava o exército formigueiro em nichos feitos com base em folhas verdes, a fazer de babysitter, isto é, a cuidar das crias das formigas.
Humilhado, o régulo da povoação de Samorito procurou vingar-se ordenando aos sipaios que cuspissem sobre todas as árvores da aldeia em sinal de desprezo para com as swinhonho…
Nessa semana, morreram dez sipaios desidratados.
As formigas?
Essas ficaram de facto envergonhadas, de tal forma que se puseram em pranto e não queriam mais abandonar o recôndito dos seus nichos. Mas Samorito apressou-se a consolá-las, dedicando-lhes palavras meigas tais como: “aliadas naturais”, e até ofereceu-se a ajudá-las quando se decidissem por organizar uma aldeia comunal.
Mas estava escrito que o pequeno Samora aprontaria uma “boa” para consigo próprio.
Foi assim: na casa de Samorito gingavam duas goiabeiras muito férteis. O menino, apesar das constantes advertências da mãe, punha-se a devorar desalmadamente as goiabas verdes.
Eis que um belo dia as goiabas decidem fazer uma greve, endurecendo no seu estômago, e impossibilitando-lhe de fazer a caca. Mesmo sentindo uma grande vontade de se aliviar, o esperado cocó não fazia pum. Não conseguia sequer levantar a barriga e, por extensão, todo o seu corpo. E ele, coitadinho, que não sabia o que fazer nessas “desemergências”! Como é que um garoto de cinco anos pode saber, verdade seja perguntada, que um probleminha desses se resolve, por exemplo, tyocoletelando o interior do ânus com um pauzinho? Deixou-se simplesmente ficar onde estava, genuflectido, a soluçar, o pobre coitado.
Na verdade, nem chorar correctamente ele conseguia. O seu era um choro hilariante, que teve, inclusivamente, o condão de fazer rir um dos mais amargos habitantes da povoação, o tal Aquele-que-se-ri-uma-vez-só-por-ano, que coincidentemente transitava por perto. Era um choro assim: ha hem, ha heemu hom haa ha heemu hom haa hem hem hem heemuuuuu…
Só lá ao fim do dia, quando o pai e a mãe regressaram da machamba, é que o seu problema foi finalmente solucionado, mas mesmo eles tiveram que recorrer ao extremoso método do pedacinho de sabão no ânus…
Mas o menino ficara definitivamente traumatizado. Nunca mais na vida conseguiria aproximar-se de uma goiabeira.
Mais tarde, durante a guerra de libertação nacional, instantes antes de os guerrilheiros da FRELIMO atacarem uma base, ele dava orientações terminantes aos seus homens de reconhecimento para localizarem, antes do resto, a posição das goiabeiras.
Oiçamos um depoimento de um guerrilheiro que combateu às suas ordens:
- O comandante Samora Machel era um tipo temerário, menos quando lembrava-se das goiabas. Quando isso acontecia era um “acudam-me os espíritos”: punha-se todo a tremer como uma vara de caniço e corria de um lado para o outro até esconder-se debaixo de uma saia qualquer no destacamento feminino! Aliás, foi assim que ele conheceu a sua primeira namorada. Inclusivamente, quando lhe atacava uma onda de romantismo, costumava dizer-lhe: “o nosso foi um amor ao primeiro cheiro”. Se tivesse tido algum motivo para trair a FRELIMO, como agora tenho, teria aconselhado ao Kaúlza de Arriaga a bombardear a frente de Tete com goiabas aquando da operação “Nó Górdio”.
Depois do triste incidente, o nosso pequeno herói ficou sombrio. Já não se reconhecia nele aquele rebelde temporão infinitamente comprometido com a causa do seu povo. O seu ar fazia até prever o dia em que, já presidente, assinaria um acordo de boa vizinhança e não agressão com os boers, o Acordo de Nkomati, cujo maior, senão exclusivo, proveito para os moçambicanos foi a oportunidade de inaugurar os dentes na polpa do fruto europeu do pecado (a maçã) oferecido em toneladas por Peter Botha, em sinal da suas “boas intenções”, e distribuído pelos hospitais e escolas do país.
Por outro lado, Samorito sofreu também uma profunda perturbação psicológica, caracterizada por dificuldades afectivas, nomeadamente, no relacionamento com os seus irmãos cujos testículos faziam-lhe recordar as malfadadas goiabas.
Como corolário dessa inquietante situação, ele continuou a urinar na esteira mesmo após completar os 10 anos de idade.
Samorito sofria de enurese!
É verdade que, desde os dezoito meses, se fora paulatinamente asseando. Começara pelo cocó. E quando se pensava que, completados os cinco anos, e como é normal na província de Gaza, ele passasse para o asseio nocturno, em termos urinários, eis que a sua estabilidade psicológica conhece o abalo relacionado com o episódio das goiabas revoltadas.
Quem regressasse a sua casa, não tinha como evitar a enjoativa imagem: mantas e esteiras estendidas ao sol, bem destacadas nas faces, grandes manchas negras provocadas pela persistente exposição à urina. E o cheiro, meu Deus! Era o caso de pensar – como, certo dia, calhou a certo transeunte – que naquela casa se vendia whisky, essa bebida decadente dos capitalistas.
Escusado é dizer o quanto esse fenómeno por muita gente tido como banal – assim nos reportam as revistas que estudam a enurese em Portugal – deixou os pais de Samora inquietos e irrequietos.
Começaram por dedicar longas sessões de piparotes ao pénis do miúdo de cada vez (sempre) que as micções involuntárias sucediam. Mas, curiosamente, essa terapia não foi bem sucedida.
Seguidamente adoptaram o sistema de acordá-la no meio da noite, convidando-o a aliviar-se no penico. Mas, invariavelmente, por essas alturas, a bexiga do menino apresentava-se vazia. Ele, intempestivo, já se tinha aliviado nos cobertores.
Foi então que se decidiram por cortar o… cortar com a ingestão de líquidos nas horas vespertinas, mas tiveram que desistir da ideia, pois o pequeno ameaçou-lhes trocar o chichi pelo cocó.
- Passo a fazer a caca na cama, eu – esgrimiu.
Mas quando os piolhos tomaram de assalto a casa, a ponto de aparecerem como ingredientes nos pratos confeccionados pela avó de Samorito, aí então os seus pais tomaram a decisão de o levar ao curandeiro onde ficou internado durante uma semana. O curandeiro prescreveu-lhe uma terapia muito original: sempre que o menino urinava na cama, arranjava as coisas de modo que ele encontrasse, ao despertar pela manhã, uma maria-café enrolada ao pénis… e deixava-o gritar desenfreadamente sem consagrar-lhe nenhum tipo de mimos…
Esta última terapia teve um êxito estrondoso. Dir-se-ia mesmo, um êxito desmesurado. Para lá da conta. Samora nunca mais pôde urinar; isto é, em situação alguma, fosse na cama, fosse noutro sítio qualquer – pelo menos não da forma ortodoxa, porquanto a sua via urinária transferira-se definitivamente para o ânus.
Metia cá uma impressão vê-lo sempre a agachar-se, como a matriarca Eva fazia, para urinar.
Mas este episódio viria, ao longo da sua combativa vida, permitir-lhe poupar tempo suficiente para ensaiar aquele seu gesto famoso, ou seja, o dedo em riste, uma vez que as suas necessidades menores se tinham juntado, numa sinergética inovação, àquelas maiores.
Por outro lado, Samora reassumiu finalmente a sua característica rebeldia.
[150]
quarta-feira, maio 04, 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Um Samora que a ninguém deixou indiferente, essa é que é essa! - obrigada por este 'post', IO.
ResponderEliminarachei este Samorito irresistível, IO. obrigado pela atenção de sempre.
ResponderEliminar