sábado, setembro 23, 2006

Ana Mafalda Leite

DO OUTRO LADO, A SUL
TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO

à Luísa Petris e ao Luís Cezerilo

por aqui arrefece com o Inverno, meu amigo, e quase apetece fazer um poema. do lado de lá a paisagem é só silêncio e a alma voa descompassada.
perguntamos se o trópico de capricórnio está para chegar, pois o signo roda ao ritmo das estações. aí será verão e eu coloco nos ombros esta mágoa encasacada que me pesa e não aquece.
voltam-se as páginas dos dias uma a uma. as notícias vêm de longe em trinta e três rotações. não haverá uma canção solta na vossa pressa de votar o coração que nos prende?

estamos quietos. quase parece que hibernámos neste azul vivo que corta como o gelo num dia de sol.
pedem-nos que habitemos essa língua que aí se desmancha em arco-íris, que temperamos com gengibre esta insossa maneira de comunicar.
onde se despem afectos e se escondem charcos de solidão. tenho de atravessar o oceano e ir banhar-me dessa luz austral que me renasce.
tenho medo de morrer aqui. enregelada. atravessa-se na minha cabeça uma espécie de neve insuportável e os ossos sinto-os a estalar.
Não escolhi o trópico de câncer, não desejo andar às arrecuas. na verdade não escolhi o mapa e detesto que os lugares me prendam ao chão.
a minha natureza é andarilha e precisa de calor para crescer. não me peçam palavras que vistam a garganta de quem canta longe.
eu não posso traduzir a alma ou travesti-la. preciso de um pote cheio de xicuembos, incensos, ervas aromáticas, em que aspire a terra vermelha que trago sempre a nascer dentro de mim.
desço os olhos para o trópico de capricórnio, abro as cortinas da imaginação e o sul desenha-se por entre os dedos açafrânicos.
dizes-me então que te apaixonaste por uma jovem muçulmana que dança a dança do ventre e súbitos saris esvoaçam entre nós.
levada numa miragem, esqueço a origem dos nomes
peço à raiz do tempo que o amor nos povoe do pó das estrelas
e encantada a voz me dance nesse ventre que abraça o teu olhar maravilhado


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2 comentários:

  1. `´O subalimentados do Sonho, a Poesia é para comer!"

    Natália Correia

    Um abraço. Gostei muito.

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  2. muito obrigado pela atenção.
    abraço retribuído

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