quarta-feira, janeiro 12, 2005

João Paulo Borges Coelho

AS VISITAS DO DR. VALDEZ (excerto II)

Entretanto, lá fora tudo parece funcionar dentro da arrastada normalidade com que sempre funcionou: as figuras públicas dando a sua opinião sobre as coisas aos jornais locais antes de se refugiarem nos clubes a jogar as cartas, por vezes tendo mão (um trio de damas, dois ases), outras sem jogo nenhum; os carpinteiros brancos, com barbas espessas de três dias, passando a caminho da Munhava montados nas suas Florette, nas suas Zundapp, levando atrás, amarradas com tiras de câmaras-de-ar, a caixa das ferramentas e a lancheira cheia se é na neblina fresca da manhã, ou vazia com restos para o gato lá de casa se é no tempo dos fumos e odores vespertinos; os estivadores, em cachos, carregando sacas de serapilheira e vestidos de serapilheira depois de terem dormido em lençóis de serapilheira e comido uma shima cheirando a vapor e a serapilheira, espalhando-se pelo cais como um mar negro e agitado; os médicos dando consultas caras todos os dias, baratas uma vez por semana, receitando misteriosas mensagens em código que só a infinita sabedoria dos farmacêuticos sabe ler, antes de fecharem os consultórios para ir espairecer com as esposas à matiné das cinco; os pescadores saindo para o mar de mãos vazias e voltando ao fim do dia com algum peixe ou quase sem peixe nenhum; as raparigas da Boite Primavera, Zamina, Minita, Irene e Erleny, como outras tantas que vieram antes ou ainda outras que virão depois, passeando-se lentas pela baixa atrás das suas boquilhas e espremidas nos seus hot-pants, dando troco aos marinheiros para que não pensem que os seus piropos ficam sem resposta, antes de recolherem ao redil para enfim se prepararem para os trabalhos da noite; as meninas do Liceu Pêro de Anaia, com longos cabelos castanhos, despertando púberes instintos nos candidatos a namorados e fumando às escondidas dos pais e dos amigos dos pais; o cauteleiro arrastando-se por entre as mesas do café sem pedir licença, alardeando as suas roucas promessas; o monhé da loja coçando os pés atrás do balcão, indiferente aos clientes que lhe esquadrinham a mercadoria, uns para comprar e outros só para ver; os chineses passando as suas couves em pequenas carrinhas rastejantes e exangues, ou vendendo com modos suaves e educados os seus pijamas e camisas de casca-de-ovo, e as suas chávenas de louça fina como pele, com carantonhas no fundo olhando-nos quando bebemos, e nós bebndo sofregamente para salvar das profundezas daquele minúsculo mar esses estranhos afogados; os empregados da câmara municipal fazendo interrupções ao expediente da manhã, imunes ao calor na protecção das suas camisas brancas de casca-de-ovo compradas no Ping Ta e com os bolsos cheios de esferográficas, circulando a caminho do bazar; os contínuos caminhando nas suas estranhas e contraditórias fardas de caqui, a metade de cima um camisa à militar, a de baixo uns calções inocentes como se fossem de criança; os criados batendo tapetes nos quintais, levantando nuvens de poeira; as crianças negras chapinhando em minúsculas lagoas de água da chuva se é depois da chuva, ou na lama quase seca se é dia de sol, com as suas barrigas redondas e os olhos irradiando uma alegria inventada a partir de motivo nenhum; as crianças brancas irradiando essa mesma alegria, chapinhando na praia do Clube Náutico, nas poças de água do mar; os jovens rebeldes do Oceana fumando suruma para inventar outra cidade tão encalhada e viva quanto esta; os corvos negros de peitilho branco passeado-se lentamente pela Praia do Veleiro, crocitando nos ramos das casuarinas com voz idêntica à do cauteleiro vendedor de promessas nos cafés; os barcos imensos e descarnados, presos no areal, soltando esquírolas de ferrugem, lágrimas ferrugentas da dor que é a humilhação de acabar daquela maneira, longe das profundezas; os rodesianos cor-de-rosa e sardentos chegando em revoada com as suas filhas belíssimas muito brancas para comer camarões e beber cerveja, e em revoada partindo; os arquitectos fazendo casas modernas para terem onde morar, e os pobres casas de lata e capim para terem onde sofrer, a cada qual o seu telhado; os cozinheiros cozinhando souflés e gigantescos mariscos cor-de-rosa como o gigantesco John Dale se é de dia, as suas mulheres shima com camarões magros e secos como Ganda se é de noite, para enfim todos terem o que comer, cada qual à sua mesa; a bicicleta branca dos ice-creams passando a tilintar, anunciando os cones pontiagudos se é Esquimó, de fundo chato se é Alasca, e Vicente correndo atrás dela com as moedas na mão para trazer um sorvete de chocolate, secreto capricho de Sá Caetana; o pão que os padeiros cozem de madrugada espalhando o seu cheiro bom e universal sobre a cidade, igual para toda a gente, amolecendo no chá dos pobres a sua integridade ou deixando derramar sobre as suas fatias um cacho de ovas de caviar importado; as mulheres dos oficiais escrevendo romances melancólicos como murmúrios que as entretenham da angústia da espera; os padres conspirando nas suas inócuas capelas, na falta de alguém mais adequado para o fazer; os soldados chegando e partindo com as mãos cheias de sangue e os olhos de pavor; os combatentes no mato, diz-se em surdina, fazendo fogueiras e conspirando; os pides, atrás dos óculos negros, tomando cafés no Café Capri, vestidos com camisas brancas de casca-de-ovo dos chineses e fingindo estar de folga mas na verdade trabalhando; o mangal secando, mal-grado o desespero dos minúsculos caranguejos; o mar paciente e obstinado engolindo lentamente a terra na Praia dos Pinheiros e no Macúti, em todos os lugares; as marés cheias e vazias dando a cada uma o seu lugar, mas cada vez as marés cheias sendo mais cheias; e os dias de sol sucedendo-se uns aos outros, com dias cinzentos e chuvosos pelo meio.


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5 comentários:

  1. Las rodesianas están buenísimas

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  2. Rodesianos.....¿Traidos pelos ingleses?

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  3. Las miras impenetrables de la Poderosa Albion, impenetrables como sus politicos (maquiavélicos)

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  4. Las miras impenetrables de la Poderosa Albion, impenetrables como sus politicos (maquiavélicos)

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  5. ¿vete a cobrar al banco de londres?

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