terça-feira, outubro 05, 2004

Eduardo White

MANUAL DAS MÃOS (excerto)

Eu gostava de poder fugir a esta realidade tão fulminante. Dizem-me os amigos para enfrentar o problema, para agarrar o touro pelos cornos. Aliás, dizem-no sempre quando isto não é o que se passa com eles.

Não tenho dinheiro. Gastei-o a exilar-me em mim mesmo. No álcool, algumas vezes. A pagar rodadas dele aos amigos para não ficar sozinho. Tenho um pavor à solidão. É-me corrosiva e não sei viver com ela.

Penso, como consequência, em partir. Para onde? Não sei, se tivesse dinheiro era para uma ilha. A minha ilha. Moçambique. É bela. Antiga. Magistral.

Vejo-a:

Um pássaro revolve as asas por dentro do verde esbatido do mar. Traça a casa líquida que às estrelas, certamente, o seu piar vai dar. A história é-lhe longe, são formas entrecortadas, sobre a espuma amarelecida, dos navios cargueiros que beijam lentos o horizonte e movem silenciosos outras cargas.

A ilha suspende-se entre o vento e um negro reluzente cruza a praia com os olhos lavrando as areias. Não sei se reza, mas que pensa é mais que evidente. Testemunham os brancos cabelos e as mazelas no caqui dos desbotados calções. Cheira a marisco a brisa que inalam as narinas dentro desta paisagem e a cânfora, alguma, das memórias que ela desenha.

As redes que sobre o chão encontro estendidas, são cartas oceânicas que escreve o fundo do mar. Do texto salta a prata dos peixes, o verde amaciado das algas e uma estrela imóvel que explode, por dentro, a terra toda a girar. Claro que a areia as grava. Nessa forma de escrita mais milenar que a geringonça mágica de Gutemberg. Porque Deus descansa aqui, ao cair da noite. Silenciosamente medita por entre as lágrimas das tartarugas que junto a ele vêm desovar, ou de um negro macúa, estirado sobre o desgosto, a chorar um amor que, por teimosia, não quer morrer.

Vão longe, a navegar, os versos da miséria que do Luís de Camões a história quis esconder. Os ducados que nunca teve, nem para voltar nem para morrer, servem outros reinados e engordam a mesa dos que ainda julgam que poeta bom só miserável pode escrever. Lêem e estudam o que não dizem os poemas, sábios doutores esses universos etários, e nem com verdade podem entender, entretanto, o que eles explodem e doem e fazem crescer no coração esquecido dos seus autores.

Por isso a Ilha é calma. Tonta de tanta quietude e, talvez, será o que querem dizer as faces delicadas das suas negras, as mãos talhadas dos seus ourives.

Assim, o meu velho Camões, macúa zarolho só por ter visto sempre demais, terá, talvez, ali, amado o seu negro, seus humanos adamastores e com eles provado essa fatalidade incontornável de ser poeta sem ilha na ilha extensa dos que nela, até hoje, não o sabem ler.

Mas era para lá que eu queria partir.


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7 comentários:

  1. Mas era para lá que eu queria partir!!!
    Obrigada por me teres dado a conhecer este texto! _ IO

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  2. Obrigado IO
    E esta frase: «Porque Deus descansa aqui, ao cair da noite. Silenciosamente medita por entre as lágrimas das tartarugas que junto a ele vêm desovar, ou de um negro macúa, estirado sobre o desgosto, a chorar um amor que, por teimosia, não quer morrer.»
    Não é tão definidora do que é único no fim da tarde na Ilha?

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  3. A terra que nos viu nascer não quer separar. A terra que nos viu nasccr quer acolher quem da sua terra viu partir.
    Um abraço e linquei o blog
    Rogério

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  4. Rogério: obrigado pela visita e pelo comentário. E qual é o endereço do seu blog para poder retribuir a visita?
    miguel

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  5. Doropene...



    Sinto que esperas por mim
    tenho-te no ultimo e secreto canto do âmago
    sabes que voltarei
    sentes que estou embelezado de regresso
    talvez te tenha confidênciado
    o momento exâto
    mas reclamas
    discordas desta intemporal
    ausência.
    Sei contudo
    que me compreendes
    que estarás presente no momento
    em que o regresso será regresso
    e,
    tu linda
    de gala embelezada
    receber-me-as ao som de promessas
    promessas de imposição definitiva
    promessas de inausência constante
    promessas amor eterno entre nós
    Oh...
    quanta saudade de te encontrar
    falar-te descontraidamente
    sentado
    olhando o horinzonte logínquo
    ao pôr do sol teu
    só teu
    que da varanda tua
    permites observar
    Espero ansiosamente
    o nosso reencontro definitivo
    aguardo


    aniceto manhique

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  6. Oi!

    A-d-o-r-o White... textos, poemas... perco-me em suas palavras, "viajo" com ele pelos ventos do Oriente...
    adorei o blog também.
    Abraço!

    bia

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  7. espectaculo....o melhor poeta contemporaneo.

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