Rui Knopfli
RETORNO
Nous reviendrons dans nos enfants.
Subo um passeio branco alastrado de sombra,
luz e folhas caídas.
Pela mão vai minha filha,
juntos subimos rente ao fim
da tarde.
Apertando-me os dedos, olhos nos olhos,
minha filha faz-me as perguntas de todas
as crianças.
Seus olhos espelham os meus
e na boquita fresca vagueia o sorriso
que outrora perdi.
Absorto, caminho rumo ao fim do tempo,
ela, rumo ao princípio.
O meu poente roxo é a sua alvorada
estridente.
Termino um pouco onde ela começa,
mas minhas mãos continuam nas suas.
Penso agora na morte sem angústia
e na vida com outro empenho.
Minha filha vai comigo, seus olhos,
seus gestos, seu sorriso,
lembrança de mim.
Vou partindo. Ela apenas chega.
A tarde cai e não é triste morrendo.
[53]
segunda-feira, dezembro 29, 2003
sábado, dezembro 27, 2003
Noémia de Sousa
PORQUÊ
Por que é que as acácias de repente
floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas de electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,
Por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?
[52]
PORQUÊ
Por que é que as acácias de repente
floriram flores de sangue?
Por que é que as noites já não são calmas e doces,
por que são agora carregadas de electricidade
e longas, longas?
Ah, por que é que os negros já não gemem,
noite fora,
Por que é que os negros gritam,
gritam à luz do dia?
[52]
quarta-feira, dezembro 24, 2003
Nuno Bermudes
NATAL EM ÁFRICA
«Natal... Na província neva»
- Fernando Pessoa
Como no longe
europeu,
Natal -
mas na província não neva,
nem arde o fogo
nas lareiras,
nem a estrela dos Reis Magos
brilha neste céu.
Idênticos,
Só mesmo a solidão
e o cansaço.
- E toda a esperança,
como nas terras onde neva,
se perdeu.
[51]
NATAL EM ÁFRICA
«Natal... Na província neva»
- Fernando Pessoa
Como no longe
europeu,
Natal -
mas na província não neva,
nem arde o fogo
nas lareiras,
nem a estrela dos Reis Magos
brilha neste céu.
Idênticos,
Só mesmo a solidão
e o cansaço.
- E toda a esperança,
como nas terras onde neva,
se perdeu.
[51]
domingo, dezembro 21, 2003
Noémia de Sousa
A MULHER QUE RI À VIDA E À MORTE
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam.
Breve, muito breve
tomarei o meu lugar entre os antepassados
À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil
as unhas córneas de todos os labores
este invólucro sulcado pela aranha dos dias
Enquanto não falo com a voz do nyanga
cada aurora é uma vitória
saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo
Oyo, oyo, vida!
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam
[50]
A MULHER QUE RI À VIDA E À MORTE
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam.
Breve, muito breve
tomarei o meu lugar entre os antepassados
À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil
as unhas córneas de todos os labores
este invólucro sulcado pela aranha dos dias
Enquanto não falo com a voz do nyanga
cada aurora é uma vitória
saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo
Oyo, oyo, vida!
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam
[50]
sexta-feira, dezembro 19, 2003
Noémia de Sousa
A BILLIE HOLIDAY, CANTORA
Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.
E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.
E começava assim a canção:
“Into each heart some rain must fall...”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...
Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...
No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...
O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...
Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,
e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!
[49]
A BILLIE HOLIDAY, CANTORA
Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.
E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.
E começava assim a canção:
“Into each heart some rain must fall...”
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...
Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares “blues”, dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...
No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...
O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...
Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os “blues” eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,
e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!
[49]
segunda-feira, dezembro 15, 2003
José Craveirinha
BOATO DO VELHO USSENE
Esposa e filhos do velho Ussene
são genuinos espíritos
de fábula.
Por agora o boato apenas põe o velho Ussene
refém-camionista sequestrado
no meio da mata.
Ou
falsa africanitude ou pura africanice
enquanto este feitiço não souber
onde está ou não está o velho Ussene
Mas quando?
A mulher e os filhos vão magicando
a boa nova do velho Ussene
mãos no volante
a saltar dos boatos
e a chegar a casa.
[48]
BOATO DO VELHO USSENE
Esposa e filhos do velho Ussene
são genuinos espíritos
de fábula.
Por agora o boato apenas põe o velho Ussene
refém-camionista sequestrado
no meio da mata.
Ou
falsa africanitude ou pura africanice
enquanto este feitiço não souber
onde está ou não está o velho Ussene
Mas quando?
A mulher e os filhos vão magicando
a boa nova do velho Ussene
mãos no volante
a saltar dos boatos
e a chegar a casa.
[48]
sexta-feira, dezembro 12, 2003
João Dias
GODIDO
"Era um vêgi um dia. Barranco chigou no nosso terra. Parota, tinha degi. E patrrão ficou falar assi": - "Agora machamba não é de prreto."
"Brranco ficou no terra."
O senhor Manuel Costa veio à povoação e assentou seus projectos ao lado dos negros. Trazia máquinas, autoridade, réguas. Espalhou dinheiro e panos de fantasia pelas gentes, trazendo à sua quinta os braços do sector. Trabalhar para o senhor Costa era mais seguro porque se abrigavam dos maus tempos que destroem os cultivos. Os brancos até lutam vantajosamente contra a Natureza.
Os pretos dividiam-se em dois grupos: os das pequenas machambas independentes e os empregados da quinta. Os primeiros , sentindo o peso dos impostos, vendiam seus produtos ao caseiro. De modo que uns subordinados directamente e outros conscientes de uma liberdade que não tinham, todos viviam para o grande proprietário.
Quatro meses andados, no lugar o senhor Costa se tornou um verdadeiro soba. Até fazia de juiz entre os indígenas.
Grandes camiões paravam ali. Os armazéns falavam de tudo que se produzia e os carros afastavam-se de pneus em baixo, pingando amendoins ou feijões que sacos rotos não seguravam. Aquela carga descongestionava os armazéns e ia espalhar libras no senhor Costa.
Os produtos seguiam para grandes cidades. Na aldeia, a fome.
"Di modo qui os prreto trabaia, e, às vêzi, fica fome no barriga dele. Não te comida para o gente."
Um feiticeiro disse uma vez que a fome que começava nascendo era uma praga dos antepassados. Que andava um anjo mau na povoação. "Dá mim 20 cábêça ha-di matar este chatice qui te no terra." Mas os negros supersticiosos desconfiaram do que se lhe dizia e seguraram suas cabeças de gado.
O branco, raivando riso, empurrou para longe o negro ladrão.
Os indígenas viram depois uma sombra e quiseram bater no feiticeiro que deitava pesos em seus pensamentos.
De manhã, ainda a claridade rasgava farrapos de escuridão, um sino chamava às charruas e colheitas. Carlota trabalhou enquanto se lhe enchia o ventre.
Certo dia sentiu náuseas, voltou à palhota. Descontaram-lhe horas de trabalho.
A barriga rompeu e vazou. O senhor Costa espiou.
- Azar! Se fosse mulher, a mão-de-obra...
Mas não havia dúvidas. Nem a barba lhe faltaria ao crescer. Homem com todas as características. Na idade, havia de distrair as tombazanas da faina diária, rebolar por elas na mata. E as horas de sexo quem as perdia em trabalho era ele, caseiro, que não tinha olhos em todos os cantos simultaneamente.
Carlota continuou entre o quarto do senhor Costa e os negros da palhota. Entre eles, Godido germinou sem cinismos a roer até aos dedos a mandioca que a mãe lhe dava pelo dia.
A vida fazia-se fábrica de descasque: os homens entravam, descascavam-se e saíam farelo para estrumeira. Na máquina ficava suor. Amadureciam os campos, desfazia-se a vida em adubo. Não se pintavam novas cores no cenário; era aquele o método único, com mais ou menos pormenores.
"Escola pra preto num tinha. Branco estava a falar cos pretos é só pra cavari, cavari ni chão."
Mamana Carlota lembrou que tinham passado tantos anos quantos os dedos das mãos e de um pé, depois que Godido nascera. Cercavam-no olhos brancos de cobiça do senhor Costa, gulavam-lhe charruas e sementeiras no campo. Mãe-negra desgastara-se naquilo; sabia os trabalhos dos que nem corpo haviam para a sexualidade do senhor Costa.
Godido precisava outros rumos.
A vida realiza-se sempre certa onde quer que seja, mas nós não somos suficientemente fortes para o compreender e executar.
O negro olhou-se entre campos e montes, a alma sangrando lágrimas aos cantos dos olhos. "Patarrão não esconfiou eu estava fugir." A mãe ficara a mentir um inesperado desaparecimento como se esquecesse aquelas últimas palavras ditas ao filho, que a vida estava um bocado além da mandioca e do chicote. Mas havia de dizer ao senhor Costa: - "Minha Godido ficou maluco; fugiu... fugiu do soroviço. Dêxou patrão, dêxou mãe. Maluco!"
Godido mediu a falta de uma voz de mãe onde apoiar as acções, uma voz de mãe a cansar-lhe os ouvidos: "Num fagi isso!, Godido vênha aqui."
A estrada parecia doida no seu andar, atirando-se da colina ao vale quantas vezes com brusquidão. Morava em baixo uma respiração de grades. Vazio de casas e homens. A falar-nos da vida humana só estrada. Despropositadamente, raríssimos quase-pastores irmanados a elas. Ninguém acredita que sejam homens. Mantém-se que ali só estiveram os construtores da estrada, e viajantes.
Godido deu um passo menos seguro e pestanejou. Lembrara-se que podia passar alguém por ele. Com mil diabos!
- "Mim vai no cidade viver co brancos", diria a seus patrícios.
Complicavam-se as coisas se passasse por um branco. E neste pensamento falhou-lhe o coração e sentiu um frio nos pés. Que ia em serviço, haviam de dizer.
A cidade agora começou a assustá-lo. Tinha medo. Era terra dos brancos. Os brancos eram como o senhor Costa. A cidade eram muitos senhores Costas. A paisagem à volta despiu-se e o caminho entrou de oscilar num "Vou? Não vou?"
Os negros lá deviam ficar sufocados. O seu caminho era para trás, na senzala. Que se não metesse em cavalarias altas.
Mas a quinta dava-lhe náuseas e um caminho novo pedia ser pisado. "Os branco di cidade não fagi mal. Ni mato já mi chatia catinga de mamana, e paiota do gente co chuva no cama."
Vertigens de novo, esperavam-no. Os pretos não estariam mais puxando carroças, como na quinta. O chão e o céu perderiam areia e azul e tudo seria oiro como o Sol. Ná! Aquele cheiro a suor da mãe e a senhor Costa enjoavam.
A imagem do burgo deu-lhe sonho e medo alternados. A estrada ora escorregava gulosa, ora oscilava em vontades de palhota.
Ao longe pinceladas amarelo-avermelhadas davam cidade. Era como que o limiar de outra existência mais real para Godido. - "Hih! Tão bom! Olhó o cidade." O ambiente ter-se-ia rido do seu estado de alma se o soubesse.
Como se não fosse humano um negro pensar que a "vida do negro há-de acabar."
[47]
GODIDO
"Era um vêgi um dia. Barranco chigou no nosso terra. Parota, tinha degi. E patrrão ficou falar assi": - "Agora machamba não é de prreto."
"Brranco ficou no terra."
O senhor Manuel Costa veio à povoação e assentou seus projectos ao lado dos negros. Trazia máquinas, autoridade, réguas. Espalhou dinheiro e panos de fantasia pelas gentes, trazendo à sua quinta os braços do sector. Trabalhar para o senhor Costa era mais seguro porque se abrigavam dos maus tempos que destroem os cultivos. Os brancos até lutam vantajosamente contra a Natureza.
Os pretos dividiam-se em dois grupos: os das pequenas machambas independentes e os empregados da quinta. Os primeiros , sentindo o peso dos impostos, vendiam seus produtos ao caseiro. De modo que uns subordinados directamente e outros conscientes de uma liberdade que não tinham, todos viviam para o grande proprietário.
Quatro meses andados, no lugar o senhor Costa se tornou um verdadeiro soba. Até fazia de juiz entre os indígenas.
Grandes camiões paravam ali. Os armazéns falavam de tudo que se produzia e os carros afastavam-se de pneus em baixo, pingando amendoins ou feijões que sacos rotos não seguravam. Aquela carga descongestionava os armazéns e ia espalhar libras no senhor Costa.
Os produtos seguiam para grandes cidades. Na aldeia, a fome.
"Di modo qui os prreto trabaia, e, às vêzi, fica fome no barriga dele. Não te comida para o gente."
Um feiticeiro disse uma vez que a fome que começava nascendo era uma praga dos antepassados. Que andava um anjo mau na povoação. "Dá mim 20 cábêça ha-di matar este chatice qui te no terra." Mas os negros supersticiosos desconfiaram do que se lhe dizia e seguraram suas cabeças de gado.
O branco, raivando riso, empurrou para longe o negro ladrão.
Os indígenas viram depois uma sombra e quiseram bater no feiticeiro que deitava pesos em seus pensamentos.
De manhã, ainda a claridade rasgava farrapos de escuridão, um sino chamava às charruas e colheitas. Carlota trabalhou enquanto se lhe enchia o ventre.
Certo dia sentiu náuseas, voltou à palhota. Descontaram-lhe horas de trabalho.
A barriga rompeu e vazou. O senhor Costa espiou.
- Azar! Se fosse mulher, a mão-de-obra...
Mas não havia dúvidas. Nem a barba lhe faltaria ao crescer. Homem com todas as características. Na idade, havia de distrair as tombazanas da faina diária, rebolar por elas na mata. E as horas de sexo quem as perdia em trabalho era ele, caseiro, que não tinha olhos em todos os cantos simultaneamente.
Carlota continuou entre o quarto do senhor Costa e os negros da palhota. Entre eles, Godido germinou sem cinismos a roer até aos dedos a mandioca que a mãe lhe dava pelo dia.
A vida fazia-se fábrica de descasque: os homens entravam, descascavam-se e saíam farelo para estrumeira. Na máquina ficava suor. Amadureciam os campos, desfazia-se a vida em adubo. Não se pintavam novas cores no cenário; era aquele o método único, com mais ou menos pormenores.
"Escola pra preto num tinha. Branco estava a falar cos pretos é só pra cavari, cavari ni chão."
Mamana Carlota lembrou que tinham passado tantos anos quantos os dedos das mãos e de um pé, depois que Godido nascera. Cercavam-no olhos brancos de cobiça do senhor Costa, gulavam-lhe charruas e sementeiras no campo. Mãe-negra desgastara-se naquilo; sabia os trabalhos dos que nem corpo haviam para a sexualidade do senhor Costa.
Godido precisava outros rumos.
A vida realiza-se sempre certa onde quer que seja, mas nós não somos suficientemente fortes para o compreender e executar.
O negro olhou-se entre campos e montes, a alma sangrando lágrimas aos cantos dos olhos. "Patarrão não esconfiou eu estava fugir." A mãe ficara a mentir um inesperado desaparecimento como se esquecesse aquelas últimas palavras ditas ao filho, que a vida estava um bocado além da mandioca e do chicote. Mas havia de dizer ao senhor Costa: - "Minha Godido ficou maluco; fugiu... fugiu do soroviço. Dêxou patrão, dêxou mãe. Maluco!"
Godido mediu a falta de uma voz de mãe onde apoiar as acções, uma voz de mãe a cansar-lhe os ouvidos: "Num fagi isso!, Godido vênha aqui."
A estrada parecia doida no seu andar, atirando-se da colina ao vale quantas vezes com brusquidão. Morava em baixo uma respiração de grades. Vazio de casas e homens. A falar-nos da vida humana só estrada. Despropositadamente, raríssimos quase-pastores irmanados a elas. Ninguém acredita que sejam homens. Mantém-se que ali só estiveram os construtores da estrada, e viajantes.
Godido deu um passo menos seguro e pestanejou. Lembrara-se que podia passar alguém por ele. Com mil diabos!
- "Mim vai no cidade viver co brancos", diria a seus patrícios.
Complicavam-se as coisas se passasse por um branco. E neste pensamento falhou-lhe o coração e sentiu um frio nos pés. Que ia em serviço, haviam de dizer.
A cidade agora começou a assustá-lo. Tinha medo. Era terra dos brancos. Os brancos eram como o senhor Costa. A cidade eram muitos senhores Costas. A paisagem à volta despiu-se e o caminho entrou de oscilar num "Vou? Não vou?"
Os negros lá deviam ficar sufocados. O seu caminho era para trás, na senzala. Que se não metesse em cavalarias altas.
Mas a quinta dava-lhe náuseas e um caminho novo pedia ser pisado. "Os branco di cidade não fagi mal. Ni mato já mi chatia catinga de mamana, e paiota do gente co chuva no cama."
Vertigens de novo, esperavam-no. Os pretos não estariam mais puxando carroças, como na quinta. O chão e o céu perderiam areia e azul e tudo seria oiro como o Sol. Ná! Aquele cheiro a suor da mãe e a senhor Costa enjoavam.
A imagem do burgo deu-lhe sonho e medo alternados. A estrada ora escorregava gulosa, ora oscilava em vontades de palhota.
Ao longe pinceladas amarelo-avermelhadas davam cidade. Era como que o limiar de outra existência mais real para Godido. - "Hih! Tão bom! Olhó o cidade." O ambiente ter-se-ia rido do seu estado de alma se o soubesse.
Como se não fosse humano um negro pensar que a "vida do negro há-de acabar."
[47]
quinta-feira, dezembro 11, 2003
segunda-feira, dezembro 08, 2003
sábado, dezembro 06, 2003
Rui Knopfli
O CAMPO
Saio para o campo. O campo
aqui não é o campo, mas a savana
eriçada de micaias e capim
feio e desigual. Habitantes
do seu mundo, os negros ignoram-me,
empenhados em suas tarefas quotidianas.
Olho para as coisas abandonadas,
latas escuras de ferrugem, lonas
pardas de pneus, ferros
retorcidos sem jeito. Entre isso
o capim espreita, descolorido, espigado
e hirsuto. Nada me sugere a face
aveludada de uma paisagem pastoril,
rosto tranquilo de criança sonhando.
Mas eles estão no seu mundo,
e eu passeio no campo.
[45]
O CAMPO
Saio para o campo. O campo
aqui não é o campo, mas a savana
eriçada de micaias e capim
feio e desigual. Habitantes
do seu mundo, os negros ignoram-me,
empenhados em suas tarefas quotidianas.
Olho para as coisas abandonadas,
latas escuras de ferrugem, lonas
pardas de pneus, ferros
retorcidos sem jeito. Entre isso
o capim espreita, descolorido, espigado
e hirsuto. Nada me sugere a face
aveludada de uma paisagem pastoril,
rosto tranquilo de criança sonhando.
Mas eles estão no seu mundo,
e eu passeio no campo.
[45]
Alberto de Lacerda
L'ISLE JOYEUSE
Ó festa de luz de mar tranquilo
De casas brancas de um branco rosa
Dum tempo antigo que aqui ficou
Ó ilha pura incandescente
Que me geraste três vezes mãe
Três vezes por mim sagrada
Por teres deuses tão variados
Por seres livre da liberdade
Que os gregos deuses orientais
Marcam a fogo um fogo alegre
Naqueles seres naquelas ilhas
Que eles nomeiam seus próprios filhos
Por motivos sobrenaturais
[44]
L'ISLE JOYEUSE
Ó festa de luz de mar tranquilo
De casas brancas de um branco rosa
Dum tempo antigo que aqui ficou
Ó ilha pura incandescente
Que me geraste três vezes mãe
Três vezes por mim sagrada
Por teres deuses tão variados
Por seres livre da liberdade
Que os gregos deuses orientais
Marcam a fogo um fogo alegre
Naqueles seres naquelas ilhas
Que eles nomeiam seus próprios filhos
Por motivos sobrenaturais
[44]
sexta-feira, dezembro 05, 2003
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