João Dias
GODIDO
"Era um vêgi um dia. Barranco chigou no nosso terra. Parota, tinha degi. E patrrão ficou falar assi": - "Agora machamba não é de prreto."
"Brranco ficou no terra."
O senhor Manuel Costa veio à povoação e assentou seus projectos ao lado dos negros. Trazia máquinas, autoridade, réguas. Espalhou dinheiro e panos de fantasia pelas gentes, trazendo à sua quinta os braços do sector. Trabalhar para o senhor Costa era mais seguro porque se abrigavam dos maus tempos que destroem os cultivos. Os brancos até lutam vantajosamente contra a Natureza.
Os pretos dividiam-se em dois grupos: os das pequenas machambas independentes e os empregados da quinta. Os primeiros , sentindo o peso dos impostos, vendiam seus produtos ao caseiro. De modo que uns subordinados directamente e outros conscientes de uma liberdade que não tinham, todos viviam para o grande proprietário.
Quatro meses andados, no lugar o senhor Costa se tornou um verdadeiro soba. Até fazia de juiz entre os indígenas.
Grandes camiões paravam ali. Os armazéns falavam de tudo que se produzia e os carros afastavam-se de pneus em baixo, pingando amendoins ou feijões que sacos rotos não seguravam. Aquela carga descongestionava os armazéns e ia espalhar libras no senhor Costa.
Os produtos seguiam para grandes cidades. Na aldeia, a fome.
"Di modo qui os prreto trabaia, e, às vêzi, fica fome no barriga dele. Não te comida para o gente."
Um feiticeiro disse uma vez que a fome que começava nascendo era uma praga dos antepassados. Que andava um anjo mau na povoação. "Dá mim 20 cábêça ha-di matar este chatice qui te no terra." Mas os negros supersticiosos desconfiaram do que se lhe dizia e seguraram suas cabeças de gado.
O branco, raivando riso, empurrou para longe o negro ladrão.
Os indígenas viram depois uma sombra e quiseram bater no feiticeiro que deitava pesos em seus pensamentos.
De manhã, ainda a claridade rasgava farrapos de escuridão, um sino chamava às charruas e colheitas. Carlota trabalhou enquanto se lhe enchia o ventre.
Certo dia sentiu náuseas, voltou à palhota. Descontaram-lhe horas de trabalho.
A barriga rompeu e vazou. O senhor Costa espiou.
- Azar! Se fosse mulher, a mão-de-obra...
Mas não havia dúvidas. Nem a barba lhe faltaria ao crescer. Homem com todas as características. Na idade, havia de distrair as tombazanas da faina diária, rebolar por elas na mata. E as horas de sexo quem as perdia em trabalho era ele, caseiro, que não tinha olhos em todos os cantos simultaneamente.
Carlota continuou entre o quarto do senhor Costa e os negros da palhota. Entre eles, Godido germinou sem cinismos a roer até aos dedos a mandioca que a mãe lhe dava pelo dia.
A vida fazia-se fábrica de descasque: os homens entravam, descascavam-se e saíam farelo para estrumeira. Na máquina ficava suor. Amadureciam os campos, desfazia-se a vida em adubo. Não se pintavam novas cores no cenário; era aquele o método único, com mais ou menos pormenores.
"Escola pra preto num tinha. Branco estava a falar cos pretos é só pra cavari, cavari ni chão."
Mamana Carlota lembrou que tinham passado tantos anos quantos os dedos das mãos e de um pé, depois que Godido nascera. Cercavam-no olhos brancos de cobiça do senhor Costa, gulavam-lhe charruas e sementeiras no campo. Mãe-negra desgastara-se naquilo; sabia os trabalhos dos que nem corpo haviam para a sexualidade do senhor Costa.
Godido precisava outros rumos.
A vida realiza-se sempre certa onde quer que seja, mas nós não somos suficientemente fortes para o compreender e executar.
O negro olhou-se entre campos e montes, a alma sangrando lágrimas aos cantos dos olhos. "Patarrão não esconfiou eu estava fugir." A mãe ficara a mentir um inesperado desaparecimento como se esquecesse aquelas últimas palavras ditas ao filho, que a vida estava um bocado além da mandioca e do chicote. Mas havia de dizer ao senhor Costa: - "Minha Godido ficou maluco; fugiu... fugiu do soroviço. Dêxou patrão, dêxou mãe. Maluco!"
Godido mediu a falta de uma voz de mãe onde apoiar as acções, uma voz de mãe a cansar-lhe os ouvidos: "Num fagi isso!, Godido vênha aqui."
A estrada parecia doida no seu andar, atirando-se da colina ao vale quantas vezes com brusquidão. Morava em baixo uma respiração de grades. Vazio de casas e homens. A falar-nos da vida humana só estrada. Despropositadamente, raríssimos quase-pastores irmanados a elas. Ninguém acredita que sejam homens. Mantém-se que ali só estiveram os construtores da estrada, e viajantes.
Godido deu um passo menos seguro e pestanejou. Lembrara-se que podia passar alguém por ele. Com mil diabos!
- "Mim vai no cidade viver co brancos", diria a seus patrícios.
Complicavam-se as coisas se passasse por um branco. E neste pensamento falhou-lhe o coração e sentiu um frio nos pés. Que ia em serviço, haviam de dizer.
A cidade agora começou a assustá-lo. Tinha medo. Era terra dos brancos. Os brancos eram como o senhor Costa. A cidade eram muitos senhores Costas. A paisagem à volta despiu-se e o caminho entrou de oscilar num "Vou? Não vou?"
Os negros lá deviam ficar sufocados. O seu caminho era para trás, na senzala. Que se não metesse em cavalarias altas.
Mas a quinta dava-lhe náuseas e um caminho novo pedia ser pisado. "Os branco di cidade não fagi mal. Ni mato já mi chatia catinga de mamana, e paiota do gente co chuva no cama."
Vertigens de novo, esperavam-no. Os pretos não estariam mais puxando carroças, como na quinta. O chão e o céu perderiam areia e azul e tudo seria oiro como o Sol. Ná! Aquele cheiro a suor da mãe e a senhor Costa enjoavam.
A imagem do burgo deu-lhe sonho e medo alternados. A estrada ora escorregava gulosa, ora oscilava em vontades de palhota.
Ao longe pinceladas amarelo-avermelhadas davam cidade. Era como que o limiar de outra existência mais real para Godido. - "Hih! Tão bom! Olhó o cidade." O ambiente ter-se-ia rido do seu estado de alma se o soubesse.
Como se não fosse humano um negro pensar que a "vida do negro há-de acabar."
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