domingo, junho 14, 2009

Paulina Chiziane

O ALEGRE CANTO DA PERDIZ (excerto)

Para suavizar a verdade e penetrar a profundidade, José dos Montes conta histórias antigas. As melhores histórias começam todas da mesma maneira. Era uma vez....
- A voz do sangue convocou este magno encontro – explica José dos Montes -, sob nossas veias corre o sangue sagrado das pedras. O céu azul foi chocado nos Montes Namuli, num ovo de perdiz. Nasceu com asas de pássaro, voou e colonizou a terra inteira. Aqui nasceu a primeira estrela, do ovo da mesma perdiz, estalou até ao céu, explodiu e espalhou-se como fogo-de-artifício formando a Via Láctea. É aqui o princípio do mundo. O fim do mundo. Todas as raças nasceram aqui. Dão a volta ao mundo e regressam, porque os Namuli unem todos os que querem bem para que comam numa só concha e bebam a água da mesma nascente.
Os braços do canavial ondeiam ao vento, soltando uma fanfarra imensa. Trazendo memórias de todas as origens e a razão da escravidão humana à volta dos cocos, do chá e do sisal.
O rio Zambeze, o mar, o palmar e os Montes Namuli unem-se num polígono de diamante. Deus criou esta terra num momento de felicidade e a prendou de beleza extrema, causando paixão exacerbada em qualquer viandante e, por isso, era uma vez....
Histórias de navegadores que se fizeram ao mar em busca de pipipiri numa terra distante. Histórias das onze sereias, todas irmãs, sendo a Zambézia a mais bela. Memórias dos marinheiros e do chicote dos prazeiros. Histórias das donas e sinhás. Da Companhia da Zambézia, do Boror e do palmar. Histórias das mulheres guerreiras que penetram na fortaleza do invasor, roubaram as sementes os homens e construíram a barreira da vida, mostrando ao mundo quem, perante a mulher zambeziana, o invasor não tem omnipotência. Provando que superioridade das raças era simples treta. Histórias dos deusues dos montes que abençoaram a Zambézia com o sangue divino de pretos, brancos, amarelos, numa sopa de raças mais recheada que sopa de pedra.
- Somos fazedores de chuva e guardiães da água – explica José dos Montes. – Comandantes da trovoada. Nascemos ao canto das perdizes, gurué, gurué! Construímos nas cavernas. Agricultávamos os cereais cm cornos de antílope. Dos ossos longos das gazelas fazíamos os cachimbos para tabaco dos nossos guerreiros. Vieram os brancos e fomos apanhados como ratos. Escravizaram-nos.
Todos erguem os olhos para contemplar mais uma vez a imagem da terra mãe na gestação do mundo. Deixando aflorar a emoção no coração do Éden. Contemplando os montes à distância, confirmando tudo o que já sabiam. És filho apenas do ventre da tua mãe. Desde o nascimento estás só e viverás só. És mãe apenas quando o filho te habita o ventre. Depois do parto, cada um ganha identidade própria e segue o seu próprio destino.
- Somos de passos silenciosos, que pisam o chão em segredo. Que não aceitam a prisão de uma casa. Passos de aventuras na descoberta do novo mundo. Construímos o lar nas encostas dos montes e fomos arrastados pelas enxurradas, éramos filhos das aboboreiras semeadas nas bermas das estradas, colhidos por qualquer viandante. Palmilhávamos o solo até aos confins da terra. Damos a volta silenciosamente e estamos aqui, no ponto de partida. Aqui tudo começa e tudo termina. O mundo é redondo.
A voz inquisitiva dos filhos se ouve. Se os antepassados foram ontem heróis, não se entende que os descendentes saboreiem a parte mais amarga do percurso.


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Colaboração enviada pela Vera Lúcia

4 comentários:

  1. Ah, que bom ser ignorante... deixa espaço para "saborear" o mundo inteiro...

    já tinha "ouvido" falar na paulina, mas nunca tinha lido uma linha! agora quero ler muitas, graças a você...

    um grande abraço e seja bem vindo também na minha esplanada das letras e outras triviais coisas mais, dessa coisa que chamam vida

    Um abraço

    Leonardo B.
    Bizarril
    Portugal

    www.impressoesdigitais2.blogspot.com

    (se quiser dar um passagem no meu post de ontem, que dediquei a wazimbo, o Seu Benfica...)

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  2. obrigado pela visita. vou sim visitar a tua esplanada e ouvir o Wazimbo.
    abraço

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  3. Bravo Paulina,è muito interessante o vosso texto e è uma fonte de inspiraçäo para nös os jovens.

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