sexta-feira, junho 30, 2006

João Paulo Borges Coelho

AS DUAS SOMBRAS DO RIO (excerto/1)

De volta ao leme, o piloto Ricardo pensa agora em vilas e aldeias iguais a tantas outras: Cachomba, Chigango, Mágoè (baptizado de Velho depois de afundado, para o distinguir de um falso Mágoè a que chamam agora Novo), Canquino, Choué, Inhacososo, Carinde, Aveiro. Vilas e aldeias antigas, engolidas pelo lago. Vilas que o Estrela-do.Mar visitava e agora ignora. Que antes escalava e agora sobrevoa. Visto daquelas profundezas é como se o pequeno barco voasse, como se fosse um avião recortado no céu azul e iluminado. E vistas da superfície da água parecem aquelas vilas e aldeias um mistério onde a vida ficou suspensa e os homens e animais se transformaram em peixes, peixes cinzentos de olhos muito abertos – como se para sempre tivessem ficado surpresos com a magnitude daquele milagre.
Imagina o piloto Ricardo como será agora a vida dentro dessas cidades submersas. As casas dos brancos – de pedra – ainda lá estão, na penumbra azulada daqueles fundos aquáticos, tal como os caminhos e os mercados. Casas habitadas e caminhos percorridos por peixes silenciosos, em lentos movimentos. Mercados onde se compra e vende em silêncio. Segredos por toda a parte.
De quando em quando – como agora quando passa o barco – uma onda lenta varre aqueles espaços instalando um vago alvoroço. E os peixes, até aí serenos, disparam rápidos em diversas direcções, entrando uns pela janela da casa que foi de um velho administrador, escondendo-se outros na goteira do seu telhado, lançando-se ainda outros em correrias loucas pelas vastas planícies – hoje planícies submersas. Logo porém se aquietam e regressam ao ponto de partida, como que à procura da razão de tudo aquilo. O mesmo faz Ricardo, aguçando a imaginação e o olhar por cima da amurada, tentando descobrir mais detalhes que o ajudem a compreender aquele mundo fantástico.


[221]

Sem comentários:

Enviar um comentário