domingo, janeiro 29, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / OS SAPATOS NOVOS DE JOSEFATE NGWETANA (excerto/2)

(…) depois da curva do caminho Herculano deparou com uma pequena manda de bois movendo-se sem destino certo. Magros, procuravam resistir ao calor e à fome da única maneira que os bois conhecem: encostando-se uns aos outros, procurando a inútil protecção desse anonimato, sem saber que é assim que mais se expõem; que é ocupando maior área que ficam mais vulneráveis. Herculano olhou em volta procurando o pastor, mas não havia ali ninguém. Apenas aqueles animais de língua descaída e olhar vago. Não fossem as caudas abanando para afastar insectos sedentos da humidade das suas narinas e olhos, e estariam imóveis como se fizessem parte de um retrato. Não esboçaram o mínimo gesto de resguardo, a mais ténue tentativa de se afastar quando Herculano se aproximou. Além de conformados, estavam também perdidos. Adivinhou-o porque o gado se movimenta sempre na zona de fronteira, tendo nas costas as machambas e casas do povo, na frente o mato. São eles que desbravam esse mato mastigando, e atrás deles anda o povo. Fazem assim porque têm sempre fome, noite e dia, e porque a sua humildade os impede de conhecerem o medo do desconhecido. São vítimas potenciais conformadas com o destino, e por isso não se defendem, por isso morrem sem ter medo nem entender. Só aquele olhar vago, vogando sobre as coisas, e a incapacidade de traduzir o que ele capta num pavor do corpo.


[198]

terça-feira, janeiro 24, 2006

Heliodoro Baptista

PRESSÁGIO, MINHA AVE

(Ao Gringas e à Maria,
Poetas de outro blue-jazz)


Estou doente como um cão
num barco içado pela babugem
no ritmo Índico puro da monção;

O homem que eu disse ser,
inescrupuloso, de rara penugem,
é o capitão deste barco a arder
no seu cachimbo em forma de coração;

Longe, a ilha de seu destino, é vaga ideia
em qualquer privado jardim da consolação:
céu, mar, gaivotas de fogo, o pé-de-meia
de quando eu ainda pensava ter razão.

Este homem recorta-se no vosso céu de aço;
Ventos temporais, estrelas caídas de fronte,
O cachimbo sem tabaco, o declinado horizonte
E o coqueiro híbrido na mão insurrecta, largo o espaço.

Já não estou, afinal, doente; para sempre fui e morri.
Mas pela noite áfrica, oceânica, regresso. Renasci.


[197]
Bibliografia essencial: Heliodoro Baptista, Nos Joelhos do Silêncio, Caminho, 2005.

sábado, janeiro 21, 2006

Rui Knopfli

TELEGRAMA

Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.


[196]

sábado, janeiro 14, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / OS SAPATOS NOVOS DE JOSEFATE NGWETANA (excerto/1)

Apesar de se ver de lá a cidade de Maputo – de dia como sombra azulada, quase aguarela, de noite timidamente tremeluzindo como janela de casa de pobre – o Machangulo é uma terra complicada. Terra dos Madindindes, dizem. Assim chamados por semearem enes e dês nas palavras que usam. Não inventam propositadamente novas palavras, antes disfarçam as que existem na tentativa de passarem por inventores sem se darem ao trabalho de o ser. Gente complicada.
A orla conforma-se com essa fama. Põe-se ali o sol do lado do mar, e não de dentro como seria normal. Podia ser praia e não é porque lhe falta areal, sendo o que existe estreito e cinzento. Onde é já francamente mar crescem ainda umas árvores com a mesma desenvoltura que teriam se estivessem em terra seca (navegando, os barcos afagam por vezes os seus ramos como pássaros que voasse, ou amarram neles os cabos de âncora para descansar). Por outro lado, dentro da terra surgem lagoas altivamente encapeladas – Buti, Mandi, Mangalidje e muitas outras – como se fossem ainda elas próprias o mar. Os pequenos rios que na quase praia desaguam entram pelo mar adentro transportando ainda as suas distintas cores de rio, de um acastanhado pardacento, conseguindo com esse artifício continuar a ser rios já bem dentro da baía, quando há muito deixaram de ter margens sólidas que os sustentem. De tal forma que é possível a um pescador desaparecer com o seu xitatarru no horizonte da baía e voltar depois dizendo que não chegou ao mar, que andou apenas pescando dentro desse rio sem margens que se vejam. E fazê-lo sem estar mentindo.
É inegável, portanto, que a natureza se deixou tomar por alguma confusão quando espalhou as suas disposições neste lugar, misturando os ingredientes de forma pouco habitual. Por isso são do Machangulo os maiores caranguejos que há neste mundo, grandes e gordos como mamíferos. O caranguejo é, como se sabe, um bicho amigo da confusão, movendo-se sem direcção como se estivesse fugindo da sombra que cria, pisando com cuidado como se ela queimasse ao invés de refrescar. E girando muito os olhos numa angústia pouco esclarecida, com dentes nas mãos sempre a tentar morder coisa nenhuma. Além de grandes, esses caranguejos do Machangulo são também carrancudos e agressivos, desafiando cães e corvos no areal daquilo que tenta ser praia. Finalmente, depois de cozidos é a sua carne a mais deliciosa, embora também a mais difícil de se deixar comer devido à confusão, ainda ela, entre aquilo que são ossos e aquilo que é já carne e músculo. E a própria carapaça é cinzenta e tristonha enquanto viva, vermelho-alegre quando morta. Manifestando-se portanto ao contrário.


[195]

terça-feira, janeiro 10, 2006

João Paulo Borges Coelho

MERIDIÃO / IMPLICAÇÕES DE UM NAUFRÁGIO (excerto)

Soshana correra tanto quanto uma gazela das que eles costumavam perseguir, contornando a lagoa, atravessando o areal das suas margens, galgando o capinzal que lhes cresce junto, invadindo terreiros que se lhe atravessavam no caminho e punha em alvoroço, com porcos pretos grunhindo, cabritos bodejando, galinhas cacarejando e fugindo sem direcção, pilões tombados derramando o grão, peneiras entornando a farinha pelas esteiras e pelo chão. Continuara sem parar, perseguido pelos insultos dos prejudicados, até chegar finalmente à porta de Totwane, que dormitava sentado e com o ar aprofundado de sempre. Levou tempo até que o miúdo recuperasse o fôlego e pudesse explicar ao que vinha, o que fez entrecortando arquejos aflitivos com um fantasioso relato. Totwane, resmungão como ficava sempre que lhe interrompiam as sestas, a curiosidade crescendo-lhe porém, deu o desconto normal aos exageros juvenis a que há muito se acostumara por lidar bastante com a rapaziada, quer explicando-lhes lições quer divertindo-se. Mas o que sobrava, dados os descontos, era suficiente para lhe fazer sentir que valia a pena a caminhada. A tal fera mordendo-lhe por dentro.


[194]
Bibliografia essencial: João Paulo Borges Coelho, Índicos Indícios II - Meridião, Caminho

sábado, janeiro 07, 2006

Rui Knopfli

PAISAGEM

Acordando a densa folhagem
da mafurreira,
rouco, o grito da soa
rasga o ar parado.
Gorgolejando
responde o lagarto
humilde das pedras:

Dois tons
Na imensa orquestra do plaino.

Com fragmentados,
distantes murmúrios
de povoações algures,
paralelo, corre nas lonjuras
do sol mordente, um coro
fanhoso de cigarras.

Sob a comprida sombra de meus olhos
dormita uma adolescente negra,
finos, dengosos músculos
arquejando leve sob a pele lustrosa.

Nos confins da tarde
ri estridente um bêbedo
e mil vidas vibram poderosas
na falsa quietude dos matos.
De estranho metal,
nos espaços, cintilam agulhas.

Então,
uma brisa morna
arrasta as últimas folhas secas
por sobre
o rio e a foz.


[193]