sábado, julho 30, 2005

Jall Sinth Hussein

BASMA (9)

Deixa que a memória
Seja o lugar que esqueceste
E vem sem voltar


[168]

domingo, julho 24, 2005

Rui Knopfli

NAVIO NO PORTO

Vamos até ao cais ver o navio
panamense.
Com as suas cores sujas,
a tripulação descalça e bronzeada,
de feições índias e mulatas,
- tem um aspecto estranho o navio
Panamense.
Na franja doirada de sol
paira o gárrulo das camisas
e, sobre a brisa molenga,
flutuam fonemas espanhóis.
A gente vê cá em baixo
o negro, mais negro do carvão,
cirandando debruçado
e, lá em cima,
a cor e a música das vozes
em torno dum transístor pequeno.
A gente vê uns e vê os outros,
vê mares abrindo-se
e cais fechando-se.
E a gente pensa, olhando com olhos
estranhos
a estranheza do navio panamense.


[167]

segunda-feira, julho 18, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / CASAS DE FERRO (excerto/2)

De dia, calhando estar a maré baixa, descia o Povo dos barcos a estender os seus produtos no areal. Surgia ali um bazar desarrumado e barulhento que, embora sendo igual, era muito diferente dos restantes bazares conhecidos. O peixe, fresquíssimo, era pescado ali mesmo no local, quando ainda o tapava a maré. Havia gordas mulheres vendendo as farinhas, as couves e as cebolas; cesteiros com os seus cestos acabados de entrançar, cheirando ainda ao cheiro acre da seiva da palha; rapazes vendendo cigarros à unidade ou apalpando as capulanas para comprovar o macio do pano com que eram feitas; raparigas passeando as suas cabaças de bebida fermentada, as suas latas de amendoim torrado com tal competência que a pele se soltava com um sopro e saía voando, etérea.


[166]

quarta-feira, julho 13, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / CASAS DE FERRO (excerto/1)

Afloram nessa folha branca, meio enterrados nela, grandes barcos que aprecem ter sido espalhados ao acaso por Deus ele próprio, no tempo em que era criança e ali gostava de brincar. Um enorme petroleiro guardando do tempo antigo, quando ainda navegava, a mesma solene majestade; mais adiante, um modesto e inclinado navio de cabotagem de obscura história e pouco esclarecida função; postado entre os dois, um curto mas maciço barco de pesca com hirsuta cabeleira de grandes guindastes e enormes roldanas de onde pendiam umas correntes ferrugentas, à ré uma abertura tão escancarada que nos perguntamos como terá ele conseguido evitar que o mar lhe invadisse os interiores, quando era jovem e ainda navegava, Mais ao longe outros ainda, menores e de mais reduzido interesse, sem que se saiba se é a distância que os faz assim, se a impossibilidade de lhes chegar perto, mesmo na maré vazia. Tão diferentes todos, na forma e na altura, apenas partilhando a massa de que eram feitos: um ferro pardo nos dias enevoados, laranja quase vivo nos de sol, raiado de tons esverdeados que eram restos do sarro que a saliva do mar deixava neles ao lambê-los todos os dias. Disparando um brilho intenso à luz vermelha do fim da tarde, que era o sol reflectindo-se nos milhões de cracas que traziam agarradas aos costados – desorganizado reflexo. E à noite mais escuros que a própria escuridão, imóveis vultos, estranhos animais que ali se deixaram petrificar com pré-histórica paciência. Quando o mar se retirava ficavam eles secando ao sol, as cracas fervilhando uma cutânea respiração que de perto provocava intenso ruído, como se o sol os estivesse fritando. Depois, o mar voltava lentamente, molhando-lhes primeiro os ferrugentos cascos, logo depois subindo-lhes nos âmagos, onde provocava inúmeros remoinhos, e finalmente cobrindo-lhes o corpo inteiro nos mais baixos, quase todo nos restantes, deixando-lhes apenas os cocurutos de fora; e eles pacientes, dilatando e encolhendo, rangendo a dor da chegada e da partida das marés e dos dias.


[165]

sexta-feira, julho 08, 2005

José Pastor

A PESSOA DE JOSEFANE FICOU NO MASSACRE DE MALUANE, MAS SEU CORPO VEIO A MAPUTO PARA PÔR VELAS

Uma rajada de metralhadora
e ele caiu do camião.
Rachou-se o cóccix.
Coaxaram as rãs do rio vizinho.
Cócegas no sangue dele.
O primeiro grito foi
o canto plangente do cisne.

As árvores deliravam
ruídos de harpa. A morte,
com a sua foice aguerrida,
saqueou-lhe todo o sangue baboso
e levou-lhe a cruz ao calvário
doloroso da fossa comum.

O rio de lágrimas secou
na roda dentada da vida.
A moagem do coração parou.
Os açudes que represam o sangue
das veias desmoronaram-se.

No seu organismo
só ficaram gemidos de grilo,
primeiro;
piares de coruja,
depois;
e o silêncio sepulcral dos vermes,
por último.

A morte encafuou-se no seu ninho.
E lá, dentro de Josefane madrugador,
ficou quietinha e satisfeita
a pôr seus ovos de cotovia.

E um louva-a-deus
foi o primeiro ser vivo
a pousar no seu corpo morto.

Eu vi!, com o coração aos pirilampos…


[164]

segunda-feira, julho 04, 2005

João Paulo Borges Coelho

SETENTRIÃO / O PANO ENCARNADO (excerto/3)

(…) e viramos o olhar para fora, para ver quem passa.
Serão crianças aos pares a caminho da madrassa, rapazes com rapazes, barulhentos; raparigas com raparigas, em silêncio e de olhos postos no chão, tirados de lá apenas para varrer em volta e queimar como fogo num curto instante; velhos sem idade, a cabeça os cofiós, montados em também velhas bicicletas, que chiam e tremem mas avançam sempre; belas mulheres transportando coisas à anca ou à cabeça; e turistas, quase sempre italianos.
Guarda che bello!
Entram por uma margem e saem pela outra do estreito campo de visão que a porta nos permite, não dando sequer tampo de reter feições, que por isso nos parecem tão iguais. Como se fosse apenas um par de crianças, um velho, uma bonita rapariga, dois ou três turistas passando e tornando a passar, sempre os mesmos, mudando apenas o que trazem vestido para nos confundir. Como se fossem modelos do senhor Rashid desfilando naquela curta passarelle para nos dar ideia das potencialidades da Alfaiataria 2000.


[163]