quarta-feira, junho 30, 2004

Fonseca Amaral

EXÍLIO

Longe embora cidade paráclita
a língua se nos cola ao céu da boca
se vier o olvido.

Banhas-te connosco em águas de desterro
flutuas sempre por nossa boca
nas praias da memória.

Nos dias mais soalheiros da diáspora
és tu quem materna vem dizer «estou aqui»
à emoção que nos habita.

Marulham outras águas aqui
mas quando as invocamos é Baía do Espírito Santo
o nome que nos corre à boca.

São lembranças que viajam para ti
mãe estuante que nos deste o leite e o mel
hoje por tão longe dissipados.


[88]

sábado, junho 26, 2004

José Craveirinha

ANTI-LIRISMO INÚTIL

Não alfabetizes as palavras.
Lê-as uma por uma, meu amor,
e solda o sentimento ao que elas
juntas e despidas te dizem.

Lindo o verso
faz-se do alfabeto momentâneo
que desejamos liricamente
folheando o livro dos sinónimos.

Mas o poema
esse organiza ou ressuscita
visceral consoante a humildade
com que somos mexoeira do fértil chão
o legível som exterior do xitende
o plasma longínquo dos tambores
ou a espancada
consciência do homem vivo.


[87]

segunda-feira, junho 21, 2004

José Craveirinha

PÁTRIA

Essência
dos intumescidos lábios
quilhas fendendo as ondas
in-amor rubro de ferteis azagaias.

Ruge
o leão dos nervos.
A bússula norteia
entretanto irmãos das micaias
a juba e as folhas cujo destino
o vento impele norte a sul.
E landinizados filhos meus
crescendo realizam-se
genuínos como a própria terra.


[86]
Bibliografia essencial: José Craveirinha, Poemas Da Prisão, Texto Editora

sábado, junho 19, 2004

Rui Knopfli

POEMAZINHO REACCIONÁRIO PARA USO PARTICULAR

Tenho uma flor. Pálida.
Não uma flor difícil,
não uma rosa multicor,
complicada, de um jardim secreto.
Não uma flor agreste, uma flor
de micaia, flor da minha terra,
que sou desenraizado.
Uma flor qualquer que me inspire
e me qualifique. E adoce
este tempo que habito.
Simples, pálida, de haste longa
e pétalas simétricas.
Talvez um malmequer,
talvez algo bem mais simples.
Sem cheiro, sem cor,
sem importância alguma. Uma flor.
Uma flor de plástico.


[85]

sexta-feira, junho 11, 2004

Fonseca Amaral

KARAMCHAND

O Guru, de olhos tão antigos,
tem seu miúdo comércio
numa loja de penumbras
Sorri
e as mãos, magros insectos amestrados,
tudo apertam num retrós de perfeição.

Se a um curto gesto
a um milimétrico acto
impõe sacralidade,
os lábios escravos, esses,
salmodiam o cântico de compra-e-venda:
(Buísa mali! Teka basela! Buísa! Teka!)
- rio múrmuro que sua barca
- tem, solarmente, de percorrer.

Escurece. Fecha a porta, Mestre.
Enquista-te, aranha, no canto mais obscuro.
Não te torças,
sicómoro batido de vento.
Não te espreguices,
felino de olhos acendidos.
Mas tu, Mestre, lança essa teia,
saliva irisada de palavras,
agita os braços, distende os músculos,
à espera de bala ou pedra ou eco...

Chega-se a hora de, por teu discorrer,
se escancararem, para alguns de nós,
imprevistos corredores, arcadas e portões.
Karamchand tornam-se, a partir daí,
todas as coisas tão imponderáveis,
germinando sagradas, abissais,
sob o resfolegar asmático do petromax!

O mundo maya é ilusão,
insistes petrificado, madrugada adentro,
rasgando-te a boca o cinzel verbal do Lakavatara.
Mas Karamchand, Mestre, desperta,
já te deu o sol no rosto.

Passa a mão e uma púcara de água
por esses olhos tão antigos,
volta aos panos, agulhas e linhas
- tua habitação diurna -
por detrás do sórdido balcão.

Será mesmo de sombras o mundo maya,
ó meu guru iludido,
sombrio baneane de raízes ao vento,
lingam murcho, frio,
já sem amoroso porto a demandar?


[84]

quinta-feira, junho 03, 2004

Noémia de Sousa

SE ME QUISERES CONHECER

Para Antero

Se me quiseres conhecer,
estuda com olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas
talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
- ah, essa sou eu

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...

E nada mais perguntes,
se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne,
onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.


[83]