terça-feira, março 30, 2004

Noémia de Sousa

NOSSA VOZ

Ao J. Craveirinha

Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara
sobre o branco egoísmo dos homens
sobre a indiferença assassina de todos.
Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão
nossa voz ardente como o sol das malangas
nossa voz atabaque chamando
nossa voz lança de Maguiguana
nossa voz, irmão,
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade
e revolucionou-a
arrastou-a como um ciclone de conhecimento.

E acordou remorsos de olhos amarelos de hiena
e fez escorrer suores frios de condenados
e acendeu luzes de esperança em almas sombrias de desesperados...

Nossa voz, irmão!
nossa voz atabaque chamando.

Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança
nossa voz farol em mar de tempestade
nossa voz limando grades, grades seculares
nossa voz, irmão! nossa voz milhares,
nossa voz milhões de vozes clamando!

Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas,
nossa voz gorda de miséria,
nossa voz arrastando grilhetas
nossa voz nostálgica de ímpis
nossa voz África
nossa voz cansada da masturbação dos batuques da guerra
nossa voz gritando, gritando, gritando!
Nossa voz que descobriu até ao fundo,
lá onde coaxam as rãs,
a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo,
da simples palavra ESCRAVIDÃO:

Nossa voz gritando sem cessar,
nossa voz apontando caminhos
nossa voz xipalapala
nossa voz atabaque chamando
nossa voz, irmão!
nossa voz milhões de vozes clamando, clamando, clamando.


[70]

quarta-feira, março 24, 2004

Grabato Dias

LAURENTINA CESARINIANA 2

Mestiços somos nós todos
e eu também
mestediços visigodos
tinham um palato a modos
não muito por aí além.

Mestiços somos nós todos
judeus e mouros
e ainda bem.


[69]

terça-feira, março 23, 2004

Rui Knopfli

DAWN

Agónica noite estremece
e despedaça-se
lá fora em chuva
nas vidraças.
Das sombras, das solidões
dos recantos recônditos
da noite e da chuva
saem homens.
Pela crosta da terra passa
um frémito de arrepio.
Chove.
Chove em África.
É noite
É noite em África.
Mão desmedida ergue-se
no breu,
corpo da terra que as águas
fecundam, impregnam.
Silêncios, hesitações,
sono de séculos, jugos,
racham em surdina.
Jogamos bridge na tepidez
do living,
reclinamo-nos na morna
penumbra erótica
dos cinemas,
ou dormimos em calma
digestão.
Para lá
da noite angustiada
monótono acalanto ergue
a voz.
No inescrutável, nas sombras,
nos recantos recônditos de agónica noite
África desperta...


[68]

segunda-feira, março 22, 2004

Há um lugar reservado à sombra dos palmares para alguém que queira colaborar neste blog. Contacto: asombradospalmares@hotmail.com

quinta-feira, março 18, 2004

Rui Knopfli

MESQUITA GRANDE

Neste raso Olimpo argamassado em febre
e coral, o Deus maior sou eu. Por mais
que as pedras, os muros e as palavras afirmem
outra coisa, por mais que me abram o corpo
em forma de cruz e me submetam a árida

voz às doces inflexões do cantochão latino,
por mais que a vontade de pequenos deuses
pálidos e fulvos talhe em profusas lápides
o contrário e a sua persistência os tenha
por Senhores, o sangue que impele estas veias

é o meu. Pórticos, frontarias, o metal
das armas e o Poder exibem na tua sigla
a arrogância do conquistador. Porém o mel
da tâmaras que modula o gesto destas gentes,
o cinzel que lhes aguça a madeira dos perfis,

a lenta chama que lhes devora os magros rostos,
meus são. Dolorido e exangue o próprio
Cristo é mouro da Cabaceira e tem a esgalgada

magreza de um velho cojá asceta.
Raça de escribas, mandai, julgai, prendei:
Só Alah é grande e Maomé o seu profeta.


[67]

domingo, março 07, 2004

Rui Knopfli

II. PÁTRIA

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nome por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as paredes. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial,
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.


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quarta-feira, março 03, 2004

José Craveirinha

TROUXA DE 8 COUVES

Srª D. Josefina Amélia dos Prazeres Santos Tembe
viajando no tejadilho do calhambeque "Chapa 100"
ia à cidade de Maputo vender
uma trouxa de 8 couves
quando aquele frufru
da rajada não deixou.


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